Um dia
sinto-me vazio
como se fosse apenas
a nascente de um rio de palavras
que partiu
sem aviso prévio
um delta
de pequenas ilhas
e promontórios
e de leitos assoreados
depósito
de objectos e materiais
descartados
por um caudal de sonhos
de flautas a germinarem
nos canaviais
de gestos épicos de espuma
que ficaram pelo caminho
que o mar não viu
que pereceram
no remoinho da dúvida
na margem
encalhados na insolvência
da viagem
em afluentes
de bruma e água estagnada
e incoerência
que o desespero norteou
nunca poderei ser linha de água
nem a fertilidade da esperança
no horizonte que se esfuma
serei talvez lâmina
onde se vai afiar o silêncio
momento onde estremecem
salgueiros
debaixo dos quais peixes
de todos os credos
vão meditar
seus medos e suas sombras
e onde se pode ouvir o regougar
dos motores de rega
e o regorgitar dos grilos da solidão
nesses dias de maçãs vermelhas
irónicas a pairar
no velho pomar da imaginação
dias em que apenas podemos
ser rio ou seixo ou açude
e quanto muito rouxinol
do insólito
onde nunca seremos
foz ou nascente
por falta de profundidade
e respiração
e poente
ou ponte suspensa
para as palavras
que teimam em deixar-me
entregue a mim próprio.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira
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