domingo, 2 de novembro de 2014

Anoitece



Não saí de casa
e já anoitece

à volta da auréola 
do candeeiro da rua
deixou de haver
uma legião de mosquitos
e isso pode querer dizer 
alguma coisa

no silêncio
da casa 
de onde não saí
pode-se escutar
o ranger subtil
das páginas 
de um romance
que desfolho
ou um clamor
das vozes da ficção
na sua nocturna
vida de tinta

enquanto tal
ondas de faróis
ciclicamente
vão golpeando 
a noite
de todos
quantos habitam
esta rua
a lembrar holofotes
em campos 
de concentração

para lá das cortinas
e das persianas
das gaiolas
das cozinhas
as pessoas 
à minha frente
pisam-se
literalmente
umas por cima das outras
e vice-versa
vagueiam lentas sombras 
domésticos dramas

há dois gatos 
indiferentes
à janela
um terceiro
no sofá sentado
vê televisão
tudo tão
previsível
como se fosse
ainda a preto
e branco

vou sair agora
porque à noite
todos os gatos
são pardos.

Lisboa, 2 de Novembro de 2014
Carlos Vieira





Embriagado na sobriedade das palavras



Curvo-me
sobre as palavras
que escolhi
tento encontrar
aquelas que juntas
possam deflagrar
o fogo interior
em que se oiça
límpido o coro
dos homens
amordaçados
que em cada voz
se eleve a luz
e a lâmina
o peso líquido
que nos embriaga
em todas e cada 
palavra
reverso do silêncio.

Lisboa, 2 de Novembro de 2014
Carlos Vieira



Um corvo de azeviche...

Um corvo de azeviche
sulcou o céu azul da minha rua
preso no bico
um pedaço de queijo de cabra fresco 
do conto apenas o canto
de algum poeta
que não sabe voar.

Lisboa, 2 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

A Sombra Que Nos Acolhe: Antologia Poética Clepsydra, organizada por Gisela...

A Sombra Que Nos Acolhe: Antologia Poética Clepsydra, organizada por Gisela...: O vento, poeta, é o caminho. Amadeu Baptista Permitam-me começar com este verso do poeta Amadeu Baptista. Do mesmo modo, Gis...

Domingo de finados



Uma luz crua
no regresso indolor
à sobriedade do conhecimento
uma manhã
onde apenas um pássaro
aclara a voz
uma necessidade elementar
a interposta presença
do sol
no cor de rosa e amarelo
dos prédios desmaiado
Inverno
premeditado
num país a dormir
anestesiado
oiço afastado um rumor
de vozes
de tantos que partiram
e que de novo
agora se levantam
clamando pelo seu testemunho
inabalável determinação
sua ternura e palavra
sua coragem
não pode ser em vão
neste domingo
de finados
de luz crua
de inelutáveis memórias
ou da sua sofreguidão.

Lisboa, 2 de novembro de 2014
Carlos Vieira






sábado, 1 de novembro de 2014

A morte está de passagem



As fitas brancas a dizer polícia, em azul, delimitavam uma parte do passeio e da avenida, elegiam um jardim improvável, a irromper no meio do asfalto. À volta do cenário, pirilampos azuis e vermelhos, os focos de algumas lanternas, ocupavam-se dos diferentes ângulos da ocorrência, de iluminar as diferentes versões e objectos.
Havia um sorumbático candeeiro a uns dez metros do local do crime, não se tratava de um acidente como muitos acreditavam, um atropelamento com fuga, quanto muito. Ali e acolá néones publicitários, lá prosseguiam a sua estratégia de marketing, indiferentes ao turbilhão de emoções que hoje, teve ali o epicentro.
Algumas janelas dos prédios contíguos faziam o tal puzzle de luzes, de intensidade diferenciada, alguns residentes comentavam, de forma mais ou menos apaixonada, à janela com os vizinhos a completa ignorância do que se tinha passado, naquele evento noturno, outros permaneciam em silêncio e aproveitaram para mais um cigarro.
Os peritos forenses, nos seus fatos de anjo vestidos de branco, procurando ser objetivos dão asas à imaginação, em busca desesperada do vestígio imaculado e do pecado.
Os investigadores criminais rodopiam, indagam, procuram o móbil, confrontam, enfrentam a mínima luz, afastando a sua própria escuridão e morte, perguntam às testemunhas, aos técnicos, aos desconhecidos suspeitos, ao corpo, feito cadáver. Por momentos, nas palavras daqueles e nos seus gestos, um pequeno interregno, naquilo que será a solidão eterna.
Entre lágrimas e suspiros os familiares olhavam para o cadáver, incrédulos, perguntam-se como pode ter morrido, aquele que era uma pessoa boa, que não fazia mal a uma mosca, assim, desta forma no meio da rua, sozinho, desconheciam as palavras do poeta “que seja eterno em quanto dure”, a vida e o amor.
Comenta-se à boca calada que foi alvejado, que se ouviram dois ou três disparos, pelo que a arma poderia ser um elemento determinante, para se poder chegar ao autor.
Será que o mesmo não a deixou por ali, dado que agora a mesma queima, apontando a partir de agora, sempre para a sua responsabilidade ou será que o autor é um facínora, requintado homicida que tem uma fria relação, vingando a sua vontade, a utilidade permanente da arma do crime.
Poderia estar por ali, atirada para o seio de alguns arbustos, alguns metros à frente do local do crime, era necessário realizar desde já, buscas exaustivas.
Os curiosos foram-se afastando, o corpo foi levado para o IML, foi saindo de cena quem não era de cena, apenas as viaturas da polícia, as lanternas como enormes pirilampos foram alargando a área de investigação.
Verificavam esconsos, sargetas, papéis caídos na via pública. Os flashs das máquinas digitais que foram registando para mais tarde recordar. Os diversos croquis ultimavam-se, tentando esquematizar a emoção e o caos que se passaram no lugar do morto.
Foram-se apagando as luzes dos prédios, ouviam-se murmúrios e sussurros dos investigadores e da vizinhança.
Três tiros, pelo menos, tinham troado e relampejado, que ninguém ouvira ou vira, ninguém se compromete, igualmente, ninguém conhece a vítima que vivia há anos, a cerca de cinquenta metros do local.
Por fim, um grito de alegria ergueu-se estranhamente no adiantado da noite fria, um investigador, apontava para o meio de umas ervas altas, num campo ali próximo e dizia para os colegas. “ É um 38, é um 38!”
Num snack ali próximo já fechado, o proprietário comentava com um cliente que aquilo tinha sido um problema de trânsito, entre a vítima e um peão que se tinha insurgido na passagem da passadeira com um indivíduo que se deslocava num Audi, cinzento metalizado, o qual tinha tido difícil anuência em o deixar passar. O indivíduo de meia idade, saiu do carro sem dizer uma palavra, dirigiu-se ao peão e deu-lhe três tiros a dois metros, quando o mesmo se virou para ele.
Soube-se mais tarde que o autor era um comerciante que se dirigia a casa, a explicação que deu para o horrível acto que cometeu foram os seguintes, o negócio com esta crise estava mau, acabara de ter mais uma discussão ao telemóvel com sua mulher, por estar sempre a chegar tarde a casa.
Mas o copo de água foi aquele indivíduo que não passou, passeou pela passadeira, que lhe virou as costas, nem sequer lhe agradeceu, estava assim a pedir para ir passear para outro mundo.

Lisboa, 1 de novembro de 2014
Carlos Vieira




O teu lugar na ausência



Olho-te até ao mais fundo da tua alma
e isto já não é só
um olhar
nem apenas a tua nudez
de arrepiar.
Permaneço nesta ilusão
neste medo da luz
da busca incessante
do poder evocativo das palavras
encantatório
que te vai despertar.
Neste aposento de bela acústica
neste horror ao vazio
neste vão do silêncio
observo o delta das tuas pernas
e o movimento mínimo
do teu sono
dos teus sonhos.
Como são dolorosas
cada uma
e o somatório
das tuas ausências.

Lisboa, 1 de novembro de 2014
Carlos Vieira



Álvaro Siza, “O Horror ao vazio”