quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Apenas uma folha de ouro...


Apenas 

uma folha de ouro
no negro asfalto
e o sono interrompido
por um resmungar 
de trovão
deram início 
àquele domingo
nesta pompa 
e circunstância
de um Outono
em que desces
do meio das nuvens
molhada e nua
como é teu timbre
fazes num gesto hábil
da folha caída
um diadema
no teu porte a anunciar 
a próxima ausência
o fim doloroso do Verão
com que faremos
a generosa vindima
de mais um poema.

Lisboa, 8 de Outubro de 2014
Carlos Vieira


Uma chuva de beijos



Surpreendeu-me
a chuva miudinha
que desce pelo rosto
enevoado
da manhã de Outubro
e aos meus lábios
chega o rebelião
dos teus beijos
de água doce.

Lisboa, 8 de Outubro de 2014
Carlos Vieira




Pintura de autor desconhecido

Pouca gente fala...

Pouca gente fala 
das últimas chuvas
apenas das primeiras
precipito-me
para o intervalo
desse tempo
encharcado
ora das bátegas
ora dos pingos
do seu eterno
canto.

Lisboa, 8 de Outubro de 2014

Carlos Vieira

sempre que chove de novo...

sempre que chove de novo
chove de novo
chove
interruptamente
e não adianta escrever no molhado

Lisboa, 8 de Outubro de 2014

Carlos Vieira

sábado, 4 de outubro de 2014

Valor calórico


Andam as bicicletas
às voltas
pelas ciclovias 
da cidade
de ajustados trajes 
eléctricos de licra
os ciclistas
transpiram saúde
por todos os poros
sonham
morrer longe
daqui
a muitos anos
de felicidade.

Nos outros atalhos
e ruelas da urbe
muitos cidadãos
arrastam-se
pelo fim da tarde
sem pedalada
prestes a saltar-lhe
a corrente
de roupa coçada
em segunda mão
um pouco larga
na sua silhueta
escanzelada
ou a rebentar
pelas costuras
empanturrados
no MacDonalds
em " comida feliz" 
e coca cola.

Eu vou ficando
por aqui
esparramado
no consumo excessivo
de poesias
no fundo a vida 
sempre se resumiu
e se explicou
pelo peso das calorias.

Lisboa, 4 de Outubro de 2014

Carlos Vieira

Nada, nada, nada



Neste sábado de manhã
enquanto tomo o café

espero a Matilde
na piscina do Holmes Place
os meninos aprendem 
a nadar.

Treinam os estilos 
livre de correntes
e de bruços 
e de costas 
para o imenso mar
de escolhos
da vida.

Peixes de água doce
e aquecida
e de risco moderado
reaprendem a respirar.

Vou-me embora
cansado de tanta estafeta
neste oceano
a fazer de conta
e o tempo
está a mudar.

Mergulho
nado debaixo
de água
dou duas ou três braçadas
e estou dentro 
do liquído amniótico da solidão
vou até ao açude
da infância
deixo-me descer
até à fossa abissal
da poesia.

Carlos Vieira




sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Um último desejo



Teus olhos
prometem amêndoas
e assinalam o rasto infinito das estrelas.
Nas tuas mãos
respira-se a pureza do sal
o suor de um recreio de brincadeiras
e a clarividência das aves
que deflagram num bosque de sangue
o incêndio dos sentidos.
O teu torso tenso
é alvo acometido pelo sémen da luz
que desfalece
trespassado pela zarabatana
que inocula do desejo
apenas o veneno
e no amor
desencadeia essa morte feliz
em prolongado estertor.

Lisboa, 3 de Outubro de 2014

Carlos Vieira