quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Paisagem a branco e preto com leve apontamento de azul


Ali estou atento
ao bando de aves brancas
a esvoaçar
em formação
atento
ao vagar das vacas
brancas e pretas
que pastam
desencontradas
atento
ao desanuviar
de uma enorme
nuvem negra
que ruma a sul
por cima
dos cabos de alta tensão
de azul elétrico
o resto é paisagem
de onde fugiu a cor.
Lisboa, 17 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Um poema por duas lágrimas apenas


Duas lágrimas
correm por um só olho
cosmologicamente
para o canto
30ºgraus de ângulo
de um vértice triste
de não sei que dor
é preciso dar tempo
ao tempo que subverte
para as decompor-
Duas lágrimas
descem pelo seu rosto
contornam o argueiro
precipitam-se
até à foz
na comissura direita
da sua boca
onde as soube
sem gosto
onde irão com certeza
embargar
a sua voz já rouca.
Tanto
por tão pouca
cousa.

Lisboa, 15 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Conserto de bolso


Sentado no café
escuto-lhe
o murmúrio das vozes
o tinir dos talheres
da louça
dos olhares
o ranger
das pernas
por debaixo das mesas
e de súbito irrompe
o vapor da máquina
depois regresso
aos ruídos mais etéreos
e faço de conta
que escrevo a quatro mãos
com acompanhamento
de voz
soprada ao ouvido
- por favor
fique com o troco!
- podia dizer-me as horas!
enquanto isso
ela vai dando corda
ao meu coração
eu derramo
um copo de água
na mesa ao lado.

Lisboa, 15 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Desobediência discreta


Tímido
foi o gesto
que lançou a semente
do mais eloquente protesto
flor intrépida
e sem estação
em segredo
ali bebeu teus lábios
a água fresca
e deles brotaram
beijos de arestas
e canções de frágua
neles ecoou
a palavra breve e soterrada
dos sábios
cuja memória
se reduz agora
a reflexos efémeros
como pássaros
que preenchem
os ramos da ausência
na penumbra das florestas
gestos tímidos
que tecem na luz
protestos veementes
à fugaz janela do tempo
seus olhos húmido
acenam delicados
o ponto cruz
por detrás da cortina
em que lhe sorriu
recorrente
a linha de fuga
em que se liberta
e o pensamento único
de onde a medo
deserta.
Lisboa, 15 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

domingo, 14 de setembro de 2014

Bambu solitário



era um bambu
agitado
tu sonhavas
um peixe pendurado
os seus poemas
eram suas folhas
lenços brancos
bandeiras a drapejar
sinaléticas
de um ritual do amor
gritos a extravasar
a fronteira do corpo
indícios
de uma guerra interior
de paciência chinesa

Lisboa, 14 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



Painting of a bamboo shoot by Drue Kataoka

sábado, 13 de setembro de 2014

Barco de papel


Há lugares assim
em que de repente
se levanta
uma pequena ondulação
que deformam o teu rosto
e afetam
o afecto do teu gesto
fica turvo
em suspenso
neste espelho de água
em Belém
só permanece
nítido e imaculado
e ainda hoje
está a navegar
aquele barco de papel
que saíu
das tuas mãos
e da minha falta de jeito
e de palavras
para te poder amar.
Lisboa, 13 de Setembro de 2014
Carlos Vieira


Pintura de autor desconhecido

Dedalus




Aqui me encontro
nesta encruzilhada
neste dilema
por isso estes versos
onde me confronto
com os passos perdidos
que não são só
da minha solidão
é apenas
mais uma primeira versão
de um desencontro
com o amor e a morte
neste fim do mundo
de onde vou partir
pois oiço a tua voz
que me chama
sigo os caminhos de pó
deste mapa antigo
onde distingo vagamente
a direcção
o meu tempo já tarda
entre o instinto e a razão
em cada taberna
em cada vagabundo errante
uma estrela e um insulto
uma pedra e um sorriso
um anjo da guarda
neste dédalo
de sinais e significantes
existiu ali e acolá
amenizando
o cansaço e o frio
o imenso significado
da garupa e do olhar
de um burro
ou de um cavalo
a quem afinal
sonegaram
lugar de relevo

labirintos e farsas 
para nomear
os falsos heróis

da História.

Lisboa, 13 de Setembro de 2014
Carlos Vieira




Daedalus and Icarus, antique bas-relief; in the Villa Albani, Rome