segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Conserto de bolso


Sentado no café
escuto-lhe
o murmúrio das vozes
o tinir dos talheres
da louça
dos olhares
o ranger
das pernas
por debaixo das mesas
e de súbito irrompe
o vapor da máquina
depois regresso
aos ruídos mais etéreos
e faço de conta
que escrevo a quatro mãos
com acompanhamento
de voz
soprada ao ouvido
- por favor
fique com o troco!
- podia dizer-me as horas!
enquanto isso
ela vai dando corda
ao meu coração
eu derramo
um copo de água
na mesa ao lado.

Lisboa, 15 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Desobediência discreta


Tímido
foi o gesto
que lançou a semente
do mais eloquente protesto
flor intrépida
e sem estação
em segredo
ali bebeu teus lábios
a água fresca
e deles brotaram
beijos de arestas
e canções de frágua
neles ecoou
a palavra breve e soterrada
dos sábios
cuja memória
se reduz agora
a reflexos efémeros
como pássaros
que preenchem
os ramos da ausência
na penumbra das florestas
gestos tímidos
que tecem na luz
protestos veementes
à fugaz janela do tempo
seus olhos húmido
acenam delicados
o ponto cruz
por detrás da cortina
em que lhe sorriu
recorrente
a linha de fuga
em que se liberta
e o pensamento único
de onde a medo
deserta.
Lisboa, 15 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

domingo, 14 de setembro de 2014

Bambu solitário



era um bambu
agitado
tu sonhavas
um peixe pendurado
os seus poemas
eram suas folhas
lenços brancos
bandeiras a drapejar
sinaléticas
de um ritual do amor
gritos a extravasar
a fronteira do corpo
indícios
de uma guerra interior
de paciência chinesa

Lisboa, 14 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



Painting of a bamboo shoot by Drue Kataoka

sábado, 13 de setembro de 2014

Barco de papel


Há lugares assim
em que de repente
se levanta
uma pequena ondulação
que deformam o teu rosto
e afetam
o afecto do teu gesto
fica turvo
em suspenso
neste espelho de água
em Belém
só permanece
nítido e imaculado
e ainda hoje
está a navegar
aquele barco de papel
que saíu
das tuas mãos
e da minha falta de jeito
e de palavras
para te poder amar.
Lisboa, 13 de Setembro de 2014
Carlos Vieira


Pintura de autor desconhecido

Dedalus




Aqui me encontro
nesta encruzilhada
neste dilema
por isso estes versos
onde me confronto
com os passos perdidos
que não são só
da minha solidão
é apenas
mais uma primeira versão
de um desencontro
com o amor e a morte
neste fim do mundo
de onde vou partir
pois oiço a tua voz
que me chama
sigo os caminhos de pó
deste mapa antigo
onde distingo vagamente
a direcção
o meu tempo já tarda
entre o instinto e a razão
em cada taberna
em cada vagabundo errante
uma estrela e um insulto
uma pedra e um sorriso
um anjo da guarda
neste dédalo
de sinais e significantes
existiu ali e acolá
amenizando
o cansaço e o frio
o imenso significado
da garupa e do olhar
de um burro
ou de um cavalo
a quem afinal
sonegaram
lugar de relevo

labirintos e farsas 
para nomear
os falsos heróis

da História.

Lisboa, 13 de Setembro de 2014
Carlos Vieira




Daedalus and Icarus, antique bas-relief; in the Villa Albani, Rome


sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Embriagamento





Foi pelo intervalo
da chuva
o vento frio
costurava
nas esquinas
no fim
ao regressar
costuma
vir aos saltos
e o eco
das suas gargalhadas
estridentes
pode-se ouvir
na abóbada
riem
rimam
com as filigranas
pendentes
de água
que escorre
na copa
das árvores
e sucumbem
no néon
e na esquecida
eloquência
dos candeeiros
ou pode trocar-nos
as voltas
e rumar
pelo caminho
das pedras
no precário
exercício
de equilíbrio
etílico
dos regressos
aos magníficos
perfumes
que despertam
para as histórias
encantadas
ébrio
das primeiras chuvas.

Lisboa, 12 de Setembro de 2014
Carlos Vieira










'Matinee d'ivresse' (Morning of Ecstacy), de Tino Rodriguez, inspirado por Arthur Rimbaud

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Memórias de Afrodite



Parece que te estou a ver
na tua frescura erecta
surpreendente na sua entrega 
tempestuosa e vertical
depois mesmo quando
te descalçavas
sobre a terra negra
ias articulando
o teu gesto pausado
e natural
numa desenvoltura elegante
no meio da horta
como quem vai acalmar o mar
e ascender aos céus
na curva da tua cintura 
sobre os canteiros
de plantas aromáticas
adivinha-se a distância tensa
e ansiosa dos animais
um aroma que se confundia
com a resina dos pinhais
e para as aves da manhã 
tu eras a hora marcada
para regressarem
de novo à vida
podiam rever-te a sorrir
enquanto o ramo de hortelã
te aflorava das mãos 
tão lúcidas
e cheias de tudo e de nada
acesas 
de uma brancura insólita
momento de sofreguidão
em que de si
se esquecia
e se te vislumbrava
a vigiar a ternura das vagens
e a admirar os frutos
ou se olhavas para o céu
era porque 
no teu silêncio
germinava mansa sede
nos campos
em adoração
levantava-se 
o murmúrio do desejo
e o rumor de uma oração à chuva.

Lisboa, 11 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



 “Aphrodite” by William-Adolphe Bouguereau