quarta-feira, 21 de maio de 2014

Casa em ruínas

Na ruína, de paredes eram meia dúzia, resistem ainda duas janelas, dois olhos vazos que nos expõem o interior da casa. Destelhada, continuam de pé uma daquelas portas em duas folhas e com bandeira, de tinta ressequida, de um verde velho a descascar.

As maçanetas ainda ninguém as levou, pode algum desgraçado, procurar abrigo, bater à porta, ela dará resposta, escutando-se do lado de dentro um vento familiar, sem se aperceber que se encontrava ouvir a si mesmo, numa noite de ventos uivantes, depois pode ali repousar e descansar "os ossos", a céu quase aberto.

Percorrida a habitação apenas uma arca de pinho, a apodrecer a um canto, daquelas antigas, onde se guardava a ervilha, o feijão e outros legumes.

Cresciam uns tufos de ervas, aqui e ali esventrando o soalho. Das paredes de caliço esbranquiçado, trechos de ferrugem lacrimosa, escorriam de cima das parede de adobe ou das frestas que foram fazendo a sua assinatura.

Percebia-se a lareira, não restava, um aroma da comida ali cozinhada, nem um ronronar de histórias para adormecer ou para nos manter acordados, uma ladainha de preces, memórias de fomes e farturas.

Ali estava um despojo de navio vagamente familiar, no baldio abandonado, a vaguear nas suas quatro assoalhadas, desaparecido na guerra ou num colapso do terramoto.

Eis pois, perante vós, a imagem daquilo que resta de um lar que se desfez, da desertificação de um país que o fluxo migratório e o magnetismo das cidades acentuou. 

Estas são algumas das explicações que temos mais à mão, para aquela ruína, tão válidas como outras quaisquer. 

Porém, reconstituir os lugares, esses anónimos territórios, estes ninhos de amor perdidos no tempo, ainda nos aquece, nestes dias frios, do fim de Maio.

Lisboa, 21 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Poema da minha desumanidade



Isto aqui é o mundo
e aquele ali sou eu
tem sido sempre assim
mais perto do mundo
do que estou de mim
muito embora longe
sinto-o um filho meu
um universo que criei
qual o princípio e o fim?
reconhecer à distância
aquilo que me pertence
e aquilo que deixarei?
na minha ausência
serão apenas vestígios
do silêncio e do caos
efémeros sinais da idade
a caminho do refúgio
onde recupero folgo
para que o mundo
que por várias razões
tantas vezes perdi
regresse ao corpo
da minha humanidade.

Lisboa, 21 de Maio de 2014
Carlos Vieira

domingo, 18 de maio de 2014

Cantorio

Vou até junto
da margem
e pergunto, 
- onde vais rio
que eu canto?
este não 
me responde,
considerando
talvez,
na sua sábia
longevidade
e eloquência
da corrente
que um pouco 
mais de água
e menos vinho
e sol na cabeça,
aumentariam
a minha 
clarividência!

Lisboa, 18 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Biombos, lanternas e papagaios



Lanternas chinesas
no arraial
pássaros de origami
ao sabor
da brisa primaveril
um bailado hexagonal
festa de poemas 
de vida efémera
onde ardem
em pavios
por uma noite
almas censuradas 
uma chama interior
papagaios 
e balões de papel
que sonham
despenhar-se
das estrelas e do céu
amarrados
a versos e estribilhos
por um cordel
à espera 
que o fogo 
daí a instantes
os liberte 
deste espartilho
das sombras 
bruxuleantes
desta mão invisível
que nos tutela.

Lisboa, 18 de Maio de 2014
Carlos Vieira





Lanterna II

lanterna
que vai á frente
não vai atrás

Lisboa, 18 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Amor livre



O teu busto refulge
emerge do mistério da seda
tudo é em ti cintilação fria
estrela longínqua
dos punhos de renda
desabrocham em concha 
as tuas mãos macias
de acalmarem a tempestade
e nos teus lábios 
que foram de fogo
surgem também uma a uma
as palavras do gelo
cauterizando o excesso
da emoção
depois a coberto 
do tecido da noite diáfana
fui abrir a gaiola dourada
que para ti 
tinha construído 
de tanto amar te perdi
e sem a querer
deste alforria 
ao meu coração.

Lisboa, 18 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Ode à precariedade

Tenho
uma especial 
simpatia
pelo efémero
que se vislumbra
num breve pestanejar
no imperceptível
espreguiçar
das asas dos insectos
no rumor
da água que sobe
da raíz até ao caule
no toque da pele
nos contornos da noite
de insónia
nas inúmeras
pequenas estupefações
de abertura
das portas e janelas
no perfume
de tinta e das palavras
permanentes
nas cartas antigas
guardadas 
nas caixas dos sapatos
da saudade
na sinfonia das ondas
numa noite sem estrelas
e pés descalços no areal
de lembrar-se de um amor
se uma mão pousa
no ombro
desconhecendo
que se tratava
de uma despedida
definitiva
daquele vestido 
de um único Verão
que na memória
durante tantos anos 
se colou ao seu corpo
da primeira vez 
que dançou contigo
um slow
sem se dirigirem
uma palavra
e seus corpos possuídos
sem se tocar
naquela noite
dizerem quase tudo
dos cabelos ao vento
do calor dos teus seios 
nas suas costas
e deitados 
eles e a mota
na curva fechada
cercados do perfume da resina 
e dos pinheiros
a caminho de S. Pedro Moel
vestígios desse inútil privilégio 
de poder subir as árvores de calções
e comer todas as cerejas
e as tangerinas
perante o olhar
condescendente dos avôs
da alegria da aventura dos rios
entre canaviais
sempre a correr
sem tempo e sem sossego
e sobretudo poder amar 
o subtil momento das aves
dos seus cantos e assombrações
das armadilhas e dos ninhos
e dos bebedouros
na sua imperfeita e desajeitada
dedicação à poesia
impaciente ornitologia
das almas.

Lisboa, 18 de Maio de 2014
Carlos Vieira