sexta-feira, 25 de abril de 2014

Manifestação

hoje muita gente 
saíu à rua
no país
e houve muita
que ficou em casa 
fora os que ficaram
à porta e à janela

aqueles 
que não tem casa
podem estar melhor 
que aqueles 
que não tem rua
e tem país
todos de endereço
desconhecido

recordo aqui
aqueles 
a que foi impossível
ir à rua
e outros que nem sair à rua
puderam
todos de castigo

depois existem 
os que tem uma rua 
de liberdade a crescer
dentro de si
uma festa
onde todos vão passear

felizes
os que vivem
à sombra da liberdade
da sua gente
de uma casa
de uma rua
de um país

infelizes 
os que tendo uma casa
por o mundo terminar ali
ignoram a liberdade
e os que possuindo ruas
não tem casa 

quero
vos confessar
que não saí à rua 
fiquei em casa 
de braço dado
com a liberdade
sem reservas

aplaudo
desde aqui
os que livremente
sem preconceito
puderam sair à rua
e os que não puderam 
sair de casa e os outros 
que podendo 
o não quiseram fazer 
todos símbolos
de liberdade

hoje
nem todos 
porém 
puderam viver 
essa liberdade
ou se libertaram 
das prisões 
que crescem
dentro e fora de si
de nós

neste tempo
e neste dia
vivo esse lamento
de estarmos hoje
mais longe de nós
desse dia 
"inicial inteiro e limpo"
de um país

Lisboa, 25 de Abril de 2014
Carlos Vieira




quinta-feira, 24 de abril de 2014

poema em vias de extinção



o lince 
lindo animal 
que vislumbrei ao relento
num "relince"

o lince 
não sei se eu o procuro
se ele me visita
nesta relação 
de avistamentos

o lince
tão ágil 
tão vulnerável
sobrevivente contradição

lince
em pé de fantasma
na Serra da Malcata
vive de medir as distâncias

lince
vai anjo fulgurante
que nunca vi
pela penumbra dos trilhos
predador de cheiros
matizes e reflexos

lince
notívago caçador às riscas
em busca do equilíbrio
e da sobrevivência
 impossível equação 

lince
poeta da descrição
traída 
pintor de sombras
e silêncios
em vias de extinção

Lisboa, 24 de Abril de 2014
Carlos Vieira


poema granular


a viagem 
é interrompida
por grão de areia
na engrenagem
e subtil
é a semente 
de pedra
que nos faz tropeçar

como chegaste aqui?
pequeno pedaço de terra
que trazes contigo
o insustentável peso do mundo
foi a tempestade
foi um pássaro de passagem 
ou és estilhaço da guerra

ardil do silêncio
empedernido e inábil
coração de cristal
lágrima esculpida
árido segredo
que o vento 
sopra do deserto

ao micoscópio
inventario-lhe 
as propriedades
redondo 
e um pouco rugoso
grau de resistência: 
elementar
neste laboratório
onde sonho lábios 
e sabores

como é fácil ver
o argueiro 
no olho do outro
e difícil ser cristalino
é ser 
o sal da terra
e suportar 
dentro do sapato
a areia da praia

ínfimo grão a ti 
regresso 
humildemente 
e só te pergunto
qual o caminho?
porque na origem 
e no final
irmãos seremos 
de novo reduzidos 
a pó
grão a grão

Lisboa, 24 de Abril de 2014
Carlos Vieira










quarta-feira, 23 de abril de 2014

Foste ao mercado de bairro

foste 
ao mercado
de bairro
eu fiquei 
à tua espera
aguardo 
o teu aroma de fruta
de coentros
hortelã e salsa
dás-me a tua mão
para descer 
das nuvens
regressar à terra

Lisboa, 23 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Soalheira

a tarde de hoje 
estava soalheira
estranha palavra
que desconhecida alquimia
ou oculto rio trouxe até mim
e a pôs na minha boca
a deixou nesta noite
a iluminar o pousio
das minhas mãos
e da poesia

Lisboa, 23 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Flores de liberdade



revolução dos cravos, 
das flores
de Abril, de 74
enfim 
de uma manhã de sol
lembro-me 
que a minha mãe
arejava a casa
e fazia a limpeza semanal
embora
goste de considerá-la
uma premonição
ficou-me 
a frequência
e a força da expressão
de um rádio sintonizado
no coração
e a alegria da liberdade 
proclamada
aos sete ventos
frase feita
seja lá o que isso for
para os meus catorze anos
o ser, o querer ser, 
o dever ser 
livre
tinha razão
o que nessa idade
e tempo da ilusão
por livros viajados
fez o mapa do mundo
e o ser humano
duma dimensão
incomensuravelmente maior
do que aquela 
que pudera algumas vez 
sonhar
e é essa amena flor
que interessa regar
é dessa revolução 
tranquila
que estou a falar

Lisboa, 23 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Flores de jardim XX



pediu à florista
- " quero flores?"
ela retorquiu
- "que flores? 
para que efeito?
ou "para que enfeito?"
- " não sei! quero
flores verdadeiras!"
desesperada,
a florista insistiu
- " quer um bouquet?
uma coroa? um arranjo?
dois ou três pés"
- " é para uma mulher? 
para alguém que faleceu?"
subitamente,
parecendo acordado
replicou " não!
são para mim! 
talvez, dois três pés!
sobretudo é importante
o seu perfume!
que me faça lembrar,
para quem vivo
e por quem morro!
flores de coragem,
que aguentem!"

Lisboa, 23 de Abril de 2014
Carlos Vieira