sábado, 12 de abril de 2014

Depois dos aloendros

Olhas 
os aloendros
desafios
de sabres 
acesos de venenos
e desejos
antes da praia
e de espuma
doce 
é o seu perfume
que me confunde
ou é a maresia
o antídoto
que sacia os teus lábios
ao sabor
da ondulação
bravia
de uma avidez 
de rosa 
e resquícios
de areal
sem conseguir
que o mar se cale
e dele recolher
o até agora
inacessível
segredo
da flor de sal.

Lisboa, 12 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Impassível perante o tempo reencontrado

Quando chegavam os primeiros chilreios, pinceladas de acordes, os aromas dispersos e inconsistentes das primeiras flores e cores, o irromper de botões acompanhados do rumor dos insectos, a transparência de clorofila das folhas novas, esses sinais sempre renovados e ancestrais da primavera. Ele pedia ao filho mais velho que, por vezes, o visitava depois do trabalho, para lhe colocar a sua cadeira de balouço, debaixo do carvalho, orientada para a oeste.
Esta árvore tinha várias vezes os seus oitenta anos, ali expostos às ventanias que desciam das montanhas e às agruras das estações, a todas as dores provocadas pelos seus netos, que lhe subiam os troncos, ao facto de nenhum raio a ter incomodado, apesar da sua mais que secular longevidade, permitiu-lhe celebrar a imponência da sua presença e da sua perenidade, vários quilómetros em seu redor.
A meio da tarde, por aquela época do ano, até chegar o Inverno, arrastava-se para aquele seu poiso de observação e levava um velho livro consigo, uma edição antiga, em francês, que outro velho amigo um dia lhe ofereceu e a que depois mandou pôr capas de carneira.
Quando corría uma brisa mais fresca tinha um pequeno cobertor que lhe cobria as pernas e ali permanecia até que chegasse o crepúsculo e a noite apagasse tudo o que vivia à sua volta, já que o livro, as letras e as palavras, já muito que tinham adormecido ao seu colo, após aqueles momentos em que sonhava de olhos abertos ou passava pelas brasas.
A paisagem mais longínqua era dos pinhais, onde o sol se punha e deixava a cúpula das árvores como se fossem os dedos de uma multidão que se manifestava. Embora, para si, aquilo que era mais recorrente, era a última imagem de uma batalha medieval, no momento do primeiro embate. 
Quase ouvia gritos lancinantes de combatentes trespassados por lanças e flechas e relinchos agonizantes dos cavalos, a inquieta elegância de flâmulas e estandartes, a solidão do reflexo das lâminas das espadas, o mergulho da sofreguidão das ordens e dos gritos de incentivo, engolidos nas trevas da noite e pela persistência das mortes e do socorro aos feridos, tudo isto via ou pressentia ao longe, ali tão perto tinha ocorrido a Batalha de Aljubarrota.
Levava umas migalhas no bolso, os pardais claro perceberam que desde início, esse ritual tinha benefícios recíprocos, às aves poupava-lhe algum esforço na busca cada vez mais difícil de alimentação e para o idoso a ilusão, de estar perante aquela aproximação, um pouco menos solitário e da sua diária utilidade.
O que é um facto é que os pássaros passaram a confiar mais na espécie humana, se isso para eles era bom ou mau, era algo que só apenas muitas gerações se poderia perceber. E foi também um facto é que, enquando dormitara lhe presentearam a manga do casaco com uma dejecto nauseabundo, dizem os antigos, sinal de sorte.
Outras vezes embrenhava-se na leitura, mais própriamente releitura, daquele autor francês que desde a morte da sua mulher, lhe fazia companhia, não tanto pela história mas pela confluência das palavras, das sílabas e dos sons, da justaposição da tristeza e da alegria. A cada texto revisitado, a cada ângulo do se estado de alma, reencontrava-se a si próprio, a alegria da sua solidão e a tristeza das amizades esquecidas.
Chegava a altura da melancolia da queda das folhas e do desprender da bolota, à sua volta e sobre os seus chinelos, quase sentia a terra a revolver-se, nesses dias lia pouco, soletrava os factos mínimos da natureza, a acobracia da aranha pendurada da teia, um coelho bravo mais afoito, o artifício luminoso dos pirilampos e o indescritível contraste dourado do carvalho contra o céu.
Finalmente, um dia o filho mais velho regressou do trabalho e perante o silêncio de resposta do se pai, teve pela primeira vez um sobressalto, o seu pai poderia estar morto, o livro caído no chão e as folhas do carvalho quase o cobriam, dado o vento que se tinha levantado, o seu rosto respirava um grande sossego, não deveria ter morrido há muito tempo. Lisboa, 12 de Abril de 2014 Carlos Vieira

Ponto morto

Sinto-me  o novo prisioneiro enclausurado neste tempo  perdi a senha que me levava por inteiro à madrugada limpa esqueci essa conjugação de palavras que nos tocam e nos libertam onde está a música rente à pele essa redescoberta dos sentidos eis-me aqui que atónito me confronto com a eleição da hipocrisia e do vazio será isso  que dizem que é a morte ou são apenas vestígios ou raízes. Lisboa, 12 de Abril de 2014 Carlos Vieira

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Terra de ninguém



Habita
esse local
ermo
é um sítio
frugal
um lugar
onde vive
de pé
essa gente
banal
apenas
com dois m2º
de terra
rural
um céu
de fundo azul
por cima
debaixo
a cama
é todo
o mundo.

Lisboa, 11 de Abril de 2014

Carlos Vieira

Memória olisiponense III



Façam o pino 
no Cais das Colunas
que abraçam no vazio 
restos da esteira de espuma
dos cacilheiros
vejam de pernas para o ar 
o país e o Terreiro do Paço
e o verdete de D. José 
"qual a pata direita do seu cavalo"
eis aqui estes abraços de pedra
este anódino rei
chamem o bobo da corte
e que nos divirta
debaixo do arco da vã glória
tudo escrupulosamente vigiado 
a partir das janelas dos ministérios
um imenso punhado 
de passadas e de presentes
vacuidades
podemos oferecer 
a qualquer pacato viajante
e endinheirado turista
ou cidadão 
nesta bela praça
a esconsa visão do universo
que nos venceu
como se nela coubesse 
o mundo inteiro
entrem meus caros senhores
neste país passarelle
este circo de vaidades.

Lisboa, 11 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Memória olisiponense II



A manhã desperta 
sobre o dorso de mármore
branco sujo
do chafariz pombalino
a minha mão mínima 
da infância 
pousada sob o rebordo
húmido
e macio da pedra
depois de páginas
e páginas de Júlio Verne
e de um qualquer
jogo da apanhada
a outra mão roda
a torneira de cobre
pelos meus lábios
subo aos céus
por aquela corda
de água
que apenas 
de escutar-lhe 
o canto
me sacia esta sede
de criança.


Lisboa, 11 de Abril de 2014
Carlos Vieira

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Memória olisoponense I

Lembro-me do meu dia
se medir
pelo tempo que ía levar
o elevador da Bica a chegar
do Bairro Alto ao Cais do Sodré
e daquele bailado 
das mãos acentuando os vincos 
nos envelopes do futuro
do pregão do homem das cautelas
em contramão
com a sombra esquálida 
de um cão vadio 
de permeio o brilho metálico 
do papel couchée
e das palavras entrecortadas
no esgar electrónico 
da guilhotina
soube do cheiro a cola 
e à tinta fresca
nas resmas de estampados 
recém chegados da tipografia
da antecedência do papel 
dos presentes
e dos ausentes
lembro-me das mulheres 
com o tacão alto preso 
na calçada portuguesa
e daquelas de coração solto
e das sardinhas assadas
na tasca em frente
e da sua prata escamada
por mangas de alpaca
do baton vermelho 
a esborratar a burocracia
volto ao café Oríon 
no Calhariz 
com seu séquito de bancários 
preocupados 
com o fundo de caixa
e um olho 
nos sapatos de verniz
e a taxa de esforço 
e de câmbio
ou o crédito mal-parado
e os amarfanhados alfarrabistas
desconfiados num recôndito 
a olharem-nos da penumbra
por cima dos seus óculos redondos
de aros de tartaruga 
acariciando as lombadas de carneira
de olho nas primeiras edições
depois havia 
aquela gente dos jornais
pequenos corropios
em fila indiana ou aos magotes
pelas ruas estreitas e de vistas largas
tipógrafos de offset
atingidos por chumbo e de alma tingida 
gasta por várias edições
de pesadelos de muitas tiragens
e pouco dinheiro
no Largo Camões
perante os turistas
predominava a ousadia ácida 
dos pombos
tornava menos épica 
a poesia
mas lhe dava cheiro.

Lisboa, 10 de Abril de 2014


Carlos Vieira