sábado, 29 de março de 2014
Coisas
há coisas que vão ficando
fotografias louças contas antigas
não sei
debruçámo-nos tanto
sobre a minúcia do quotidiano
que o dia a dia excedeu as nossas vidas
não sei como resiste o que perdura
olho o telefone de coração na boca
e aponto coisas para não me esquecer
Luís Amorim de Sousa, in 'Nadar no Escuro"
COMISSÃO DE SERVIÇO
Ide, cantos meus, ao solitário e ao insatisfeito,
Ao nevrótico também, ao que por convenção não é escravo,
Mostrai-lhe meu desprezo por quantos os oprimem.
Ide como alta vaga de água fria,
Fixai o meu desprezo pelos opressores.
Prégai contra a opressão inconsciente,
Prégai contra a tirania do inimaginável,
Prégai contra os acordos.
Ide à burguesia que morre de seus tédios,
Às mulheres nos subúrbios,
Aos noivados revoltantes,
Àqueles cuja falência foi dissimulada,
Aos amantes infelizes,
À esposa comprada,
À mulher vinculada.
Ide àqueles que têm gostos delicados,
Àqueles cujos delicados desejos são frustrados,
Ide como uma praga sobre a estupidez do mundo;
Ide com vosso gume contra isto,
Reforçando as cordas subtis,
Levai confiança nas algas e nos tentáculos da alma.
Ide de maneira afectuosa;
Ide com um discurso claro,
Sede ansiosos por encontrar novos demónios e novas bondades,
Sede contra todas as formas de opressão.
Ide a quantos emagreceram pela meia-idade,
Ide a quantos perderam seus interesses.
Ide junto do adolescente que é amolecido na família –
Oh como é odioso
Ver três gerações numa casa existindo juntas!
É como uma velha árvore com rebentos
E com alguns ramos secos e a cair.
Ide-vos e não cuideis de opiniões,
Ide contra esta escravidão vegetal do sangue.
Sede contra toda a espécie de amortizações.
EZRA POUND
(versão portuguesa de Fernando Guedes)
À espera dos Bárbaros
O que esperamos nós agora aqui reunidos?
É que os bárbaros chegam hoje.
Por que tanta apatia no senado?Os senadores não legislam mais?
É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.
Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?
É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.
Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?
É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.
Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?
É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.
Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?
Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.
Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução. [Antes de 1911]
--------
Konstantinos Kaváfis (1863-1933) – trad. de José Paulo Paes
A oeste nada de novo
Sentou-se na esplanada
estratégicamente voltado
para oeste
pediu um copo de água
o empregado assentiu
contrariado
mas para ele
nada podia contaminar
a sede da silhueta
a desevencilhar-se
dos arbustos e das árvores
do jardim
a sua progressiva
libertação das sombras
o contraste da delicadeza
dos seus gestos
cristalinos
e da inacreditável doçura
da sua face
com o fogo a crepitar
no seu olhar
e cada vez que a recordava
bebia um gole da água
que o empregado
trouxera contrariado
e a oeste da esplanada
nada de novo.
Lisboa, 29 de Março de 2014
Carlos Vieira
"le tiers exclu"...
"(...) Talvez
a língua francesa seja mais exacta? ou todos
sejamos igualmente exactos, cada qual
na sua língua mãe? mais leves? Admirava
a boca de B., as palavras francesas na boca de B.
mais francesas do que as palavras francesas na boca
do homem suíço, que era teólogo e alemão, possivelmente.
Os estrangeiros nunca falam a língua francesa
com a desejada exactidão, com a clareza
típica da língua francesa falada por uma boca
igualmente francesa, e a boca de B.
era uma boca francesa, como a roupa de B.
era uma roupa francesa, e o corpo de B.
escondido no avesso da sua roupa francesa
era um corpo francês, inteiramente
alheio ao homem suíço menos jovem
à teologia e à santidade do homem suíço ansioso
por seduzir com a inocência todos os
jovens inocentes ou não inocentes à vista
na praça oval chamada Wilson, que éramos
nós, B. e eu. (...)"
excerto de "le tiers exclu, fantasia política", do livro Quatro Caprichos (Lisboa: Assírio & Alvim, 1999), de António Franco Alexandre.
O insustentável conhecimento dos animais
«Aos homens deu Deus uso da razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes, o uso sem a razão» do capítulo II do Sermão de Santo António aos Peixes?
Fui até à margem do rio
uma galinhola escapuliu-se
estridente pelo canavial
e todas as minhas reflexões
abandonaram-me loucas
e foram a correr atrás dela
fiquei sentado ao pé mim
contrariando o eu caçador
ancestral quedo sem saber
o que pensar junto ao rio
que me trazia e me levava
um caudal de recordações
dali a pouco oiço o restolhar
dos pensamentos na feroz
perseguição e a galinhola
veio aninhar-se atordoada
aos meus pés enquanto
falávamos eu barbos e bogas
da pesporrência do rouxinol.
Lisboa, 29 de Março de 2014
Carlos Vieira
sexta-feira, 28 de março de 2014
Enquanto chove...
Enquanto chove
à mulher ocasional
ouço-lhe todo o rosário
de lamentações
que a todos corrói
no abandono do quintal
em simultâneo
oiço toda a manhã
os pingos de chuva
na bacia de esmalte
em requiem de fundo.
Lisboa, 28 de Março de 2014
Carlos Vieira
Subscrever:
Mensagens (Atom)