terça-feira, 5 de março de 2013

A importância do beijo na evolução das espécies



Muito embora
a minha aparente frieza
permaneceram
as asas e as penas
de um romântico
do século passado
ou talvez até mais atrasado
uma bucólica firmeza
do “Rouxinol” de Bernardim
sobrevive em mim
à beira rio
e ao fim da tarde
saboreamos um gim
em nós
nada há de novo
a tua mão elegante
sobre o Bugio
apontando a foz
vai pousar
a seguir
sobre a minha
aparentemente distraída
e neste momento
pouco científico
das leis da atração
foi-se calando a tua voz
na esplanada do Darwin
fico cego
voltámos à inocência
na bissetriz
de um pôr do sol
e discutimos o significado do beijo
na secular evolução
das espécies.

Lisboa, 5 de Março de 2013
Carlos Vieira

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domingo, 3 de março de 2013

Natureza morta


Natureza morta


Tão prosaico

é o cesto de vime

conto

pousado na erva

numa nudez entrançada

de mãos ásperas

gaiola improvisada

de onde se soltam

atordoadas as aves da manhã

vais de braço dado

com a neblina

vai ao mercado

negociar

aromas de bosques

gorjeios

sortilégios de pomares

desatam-se no ar

irrompe a frescura audaz das flores

no cesto de vime

da nudez entrançada

pelo conto

de delicadas mãos

gaiola improvisada

de onda se soltam as aves

um desejo impaciente

 crepuscular.


Lisboa,3 de Março de 2013

Carlos Vieira



“Unknown garden bike”

sexta-feira, 1 de março de 2013

Epifania na penumbra do amor eterno



Estão sequestrados pela tirania da noite eterna
os amantes infelizes
encontram agora abrigo na luz efémera da lanterna

Agora na prepotente clausura da luz da lanterna
os amantes infelizes
conseguem reconhecer o refúgio da noite eterna

Lisboa, 1 de Março de 2013
Carlos Vieira


           « Masquerade » de Chantal Giry (Tiffany)

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Fulgores, fragâncias, rumores


Este é o silêncio
que te esconde
sobre a poalha
que é o peso
talvez de um século.

Ainda agora
acabado de pousar
tange a epiderme
de um gesto
exausto.

Soergue-se
no teu rosto o sorriso 
que se acende no piano
em lume brando
numa inevitabilidade
de rugas
num percutir de teclas.

Estreito istmo que me leva
à já longínqua península de ti
e me devolve
o teu grito encalhado
e onde poderia ser de novo
areal para o teu murmúrio.

Tinha sido
um tempo de grilhões
roendo ávido
a fulgurância das palavras
e tu ficaste incrédula
perante a demência das estrelas
que se afogavam no mar
inconsoláveis.

Em simultâneo
gaivotas de insónia
despenhavam-se
na espuma das páginas
do amor desencontrado.

Vislumbravam-se
frutos maduros
sonhando novas ousadias
reinventando pecados
na raiz de fantasias
hieróglifos eram
abraços desesperados.

Levo-te pela minha mão
até à escrita
ao espanto
e à inexperiência
do primeiro beijo
tu quieta
calada e sublime.

Apagas os rastos
da tua passagem
por minha casa
mas encostado às paredes
voltei a ouvir
a tua ou a minha
agitada respiração.

Seguem-te as minhas mãos
e agora não sei fazer nada
tenho presa por um cordel
uma nuvem grávida
de justiça
pode ser que um dia chova
e te reencontre.

O punhal afiado das horas
nos dentes
o teu olhar fulminante
e sem abrigo
no teu coração refém
vive o poema magnânimo
disponível e sentado.

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira

                                                      “Blue Nude” de Henri Matisse

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Canto de cisne


 
Como era belo o cisne

que ainda agora aqui passou tão lento

surpreendeu de branco

a quieta superfície de água do momento

a suave ondulação

da sua alma e seu movimento submerso

um cisne em verso

seria sempre belo e causaria espanto

dada a inquieta discrição

sua afável beleza e seu precário canto

 

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira

 

 

 

 

 

 

 

Heras


 

Descobre dentro de si

a grande solidão

dos bichos da horta

a geometria

discreta e esquálida dos cães

a cumplicidade

de semáforos e candeeiros

sonâmbulos

por becos ou arrabaldes de luz

nas madrugadas

de néon e neblina

aqui nesta terra de ninguém

que já foi terra prometida

de cidades desertas

e dos campos abandonados

a meio caminho de si mesmo

cercados de memórias

heras que nos consomem

e nos ocultam

e em hinos de clorofila

vencem na verticalidade

dos muros

a flor azul da morte

 

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira

 

                                                              Imagem de autor desconhecido

 

 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

poesia biológica


 


vou regressar à pura infância

a esse mágico tamborilar da chuva

uma voz na superfície nocturna dos lagos e do mundo

 

poderei voltar a ser a alegria íngreme dos ninhos

e de escorregar

na nudez dos troncos

 

arrancar cenouras

essa ternura de dedos enterrados na terra fértil

que saboreio na doçura de um olhar

 

um êxtase de musgo e ouro e prata no rendilhado

das árvores

metástases contidas no céu azul cobalto

 

sou apenas um único fruto no pomar

depois serei um peregrino num caminho

de terra batida

 

vejo as couves

como grandes mãos verdes

e por elas posso beber a mais pura água fresca

 

pendurados nos ramos

vejo os pássaros transidos de asas molhadas

uns do frio e outros do desespero

 

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira