quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O tigre e o sol




o olhar atento da fera

na penumbra

escutando o coração

da presa

a favor do vento

contra luz

o adeus das canas


foi ao meio-dia

em ponto

que o tigre foi um raio

fulminante

transpôs o horizonte

e o tempo


o sol é agora às listas

escorre-lhe

o sangue da jugular

entre bambus

um crepúsculo animal

de garras

e de fome saciada

de luz


Lisboa, 12 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira


Pintura de autor desconhecido

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Murmúrios, sombras e outros solstícios



Um prolongado silêncio aflito
na véspera de água
um grito

O lume brando perpendicular
ao voo da pedra
e do pardal

Os reflexos de um peixe-gato
são um piano de luz
e de espinhas

Naquele lugar inóspito a língua morta
no ventre do tempo
é apenas erva

Exausto percorre o país exangue
impunha a lâmina curva
e a triste lâmpada

O  instinto de sobrevivência
leva ao beco sem saída
o animal ferido

Lançados ao mar os restos mortais
só o secreto rumor da seiva
coincide no lamento

Uma vez a partir do suave declive
soltou-se um fruto seco
e o gesto subtil  

A história do esplendor das manhãs
feita de  fogo e flor de sal
e estampidos

A laranja que de manhã era de prata
o sol que lhe sorri nos lábios
após a palavra amarga

Uma porta que se abre arrastando-se
teu nome na minha boca
a quietude da maçã

Chega a noite com o mistério da tinta
teu perfume é sombra de vento
nos ombros nus.

Lisboa, 10 de Dezembro de 2012
Carlos Vieira

                                             Lunar Eclipse / Winter Solstice por Barbara Kacice

sábado, 8 de dezembro de 2012

Incompreensível Rumo



 

pela orla precária um corpo de espuma

sulcos de pés descalços

de deusa

 

a brisa de ouro desdenhando o mar

o pente e o lenço na deserta

duna

 

barcos melancólicos ancorados na areia

uma monotonia de peixes

e ondas à sua espera

 

renda líquida de algas e plâncton na praia

um fulgor de sal e de pérola

no seu olhar

 

inflama-se o azul cobalto no seu peito

o relâmpago de um  grito e flor

pungente

 

ao longe a gaivota era um fumo branco

que lhe ia adejando um adeus

inconsequente.

 

Lisboa, 8 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

 

                                              The Young Woman at the Beach – Edvard Munch

 

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Chove copiosamente em duas partes




I

De tudo

do dia

da chuva

da descrença

estamos encharcado até aos ossos.


Está tudo embaciado

as bátegas

as lágrimas

chovem no molhado

e aumenta o risco de “aqua planning”

e de recusa da realidade.


Os limpa pára-brisas

enlouqueceram

a imagem distorcida

ora se apaga

ora se acende

a realidade retorcida

da história.


Chove

pode haver

grandes inundações

constroem pequenas barragens

as populações

debaixo de chuva.


II

A chuva cai

e a noite também.

Merda,

perdi a chave do carro

no meio da relva,

afinal a chave

caiu na levada.

A chuva e cinco centímetros

fazem toda a diferença.

Com um peixe de rio

que a chave engoliu

vou abrir agora a porta do carro.

Cada vez mais as pessoas

são chaves,

são peixes

fora de água

que passam perdidas

esquálidas

pelo intervalo da chuva.


Lisboa, 6 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira


“It’s raining”  de autor desconhecido

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Nocturnos urbanos



 

I

 

Poderia estar aqui emboscado

a ouvir tudo o que a noite

nos esconde

ou nos trás.

O que nos contam

os insectos breves

na sua voz mínima.

Sintonizando

de antenas no ar

nas longínquas frequências

os passos de fantasma

dos que nunca dormem

dos que nunca se ouvem

dos que ninguém ouve.

 

II

Poderia ser o cão a ladrar

daqui à lua

como quem atira um verso

que lhe devolve em osso.

Se para responder

se aproximasse

era lançar-lhe o laço

era prendê-la a um pinheiro.

Só a libertaria se ela aqui

a pé juntos jurasse

nos deixar

todo o seu silêncio de prata

com que de longe

nos provoca

e os amantes infelizes

passariam a destilar

um luar de resina.

 

III

 

Poderia estar aqui

a ouvir o motor de automóvel

que se afasta

e outro que se aproxima

as luzes que se perdem

outras que me ofuscam

o piso escorregadio

e a  curva da solidão

também rima.

 

IV

Poderia deixar-me aqui

tolhido pela noite que arrefece.

Poderia começar a tremer de raiva  

numa gratuita manifestação

de estátua

que bate os dentes de frio.

Poderia tornar-me no mais humano

dos seres

que por nenhuma causa

desistiu

só de fome

se deixou vencer

numa caixa de cartão.

 

V

 

Poderia estar aqui acossado

por este rumor de reflexos

da contradição

dos medos

de cidade adormecida

e deixar-me seduzir

pela luz álgida dos candeeiros

que se cruza indefinida

na fluorescência

das insónias

dos vapores do alcóol

e da razão

do preço da electricidade

no on/off da vida

 

VI

 

Deixar-me atrair

ao mais negro beco

onde lampeja

a lúcida discrição

das lâminas

e os mais desprotegidos

com mais ou menos luta

se apagam

encontrando por fim

a paz absoluta.

 

Lisboa, 5 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

 

 

 

 

 

domingo, 2 de dezembro de 2012

Prognose Póstuma



 

Estes tempos

e este frio

impregnam-se

na epiderme.

Estaria sempre

preparado para a morte

depois que a névoa

foi conquistando

o seu rosto.

Não pode faltar

o último suspiro

de alguém que desiste

ou um pássaro inábil

a sobrevoar as hortas.

Vai permanecer

uma fugaz memória

e nela a tristeza  

pode ser apenas

um assunto doméstico

a timidez

de uma pedra fria

ou pó que assenta

sobre a história.

Tudo se resumirá

a uma única estação.

Lisboa, 2 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira

 

Citação de Friedrich Nietzche

Pintura “Morte e vida” de Gustave Klimt

sábado, 1 de dezembro de 2012

No teu corpo o horizonte


                                                                                        “Quero uma vida em forma de ti”

                                                                                         Boris Vian

 
O horizonte

é um sabre suspenso

sobre a cortina diáfana

do seu corpo

onde se tece o gume ávido

e eloquente  do desejo

que aflora

na vertigem da sua pele

que transpira um veneno

de murmúrios e de silêncio

intransigente

a chuva cai copiosamente

ela soergue-se

de um devaneio.

 

Enquanto mordes os lábios

e a lâmina a trespassa

alucinante

um incêndio

destrói veladamente

a floresta onde te prenderam

no pensamento

esse punhal suspenso

sobre o seu corpo

horizonte que lhe foge

ou círculo de fogo

que o cerca

da sua ausência.

 

Lisboa, 1 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira