quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Poema de um lago sem nome ...


Poema de um lago sem nome

que nos olhos de infância secou

 

o mistério daquele lago

era redondo, era de lodo e profundo

 

tinha um olhar duro e franco

como uma batalha naval acesa por um relâmpago

 

nele vivia o empertigado e distante mundo

de um pato marreco e branco

 

a memória era aquela pedra lisa atirada

que entre ambos passou

 

os gestos eram mágicos de capa e da espada

que irónica a todos sobrevoou

 

esta é a irrelevante história em círculos de um lago

de uma pedra e do pato

 

que ao chegar à margem do poema

por ter heróis tão pueris soçobrou.

 

 

Lisboa, 18 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

3 - Observação de Aves



Todos os dias nos écrans e nas janelas
enquadradas, árvores, inquietações e  pardais
sonhos em agonia pendurados nas cúpulas.

Deste tempo crítico do arrulhar das rolas
outras dores descem pelas chaminés e beirais,
asas de um tempo triste, penas que nos calam.

Até que os homens das prestações vencidas
das alturas sem sucesso se atiram para os jornais
aprendendo a voar, “amortizam” as suas vidas.

Lisboa, 18 de Outubro de 2012
Carlos Vieira

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Abuso da posição dominante


 

 

arrancara alguns cabelos

em sinal de boa fé tinha garantido a madrugada

e a compostura do efeito molhado de gel

 

a fim de celebrar a escritura

com uma das mãos escondeu as “partes”

a outra tremer de frio fez a assinatura

 

o homem ficara irremediavelmente só

porque devem-se honrar os compromissos

e apertar o nó da gravata

 

havia o odor da tinta permanente

que o levou daquela exigência burocrata

a um lugar que o deixou distante

 

seminu e perplexo

leu e aceitou todas as cláusulas do contrato

no notário dos negócios do tudo ou nada

 

Lisboa, 17 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

 

 

2- Observação das aves



Estava de pé sobre a falésia, a dois passos do abismo e não tinha medo de ninguém.
As gaivotas eram rabiscos no céu e o mar de pequena vaga, encrespado, era todo seu.
Ele coroado de sal viu passar as cegonhas, nuvens dentro de navios, cães que levavam os cegos pelos ares e as aves de rapina junto das andorinhas.
Reconheceu o melro que falava a sua mãe, o seu vizinho do 
lado e pareceu-lhe que viu também, o de baixo. Tantos homens amputados, os que falam sozinhos e os outros, os dos bons ofícios e dos maus. Tudo aquilo lhe era estranhamente familiar, até a chuva que aparecia para os dias cinzentos.
Para onde iam com tanta pressa com os olhos virados ao contrário, será que fugiam?
De repente tremeu, não sabe se de medo ou daquele frio de há muitos anos, num país abandonado. Sentiu-se perdido, sem saber de que lado estava o abismo.

Lisboa, 17 de Outubro de 2012
Carlos Vieira

Fogo posto de palavras


 

 

Tronco ressequido que ao lume se destina

onde ainda se reacendem despedidas

em pequenos afluentes de carvão e de resina

navegam palavras ávidas de encontros

onde se reabrem as antigas feridas

no lume brando e na memória cristalina

um unguento mágico que dos confrontos

da penumbra nos liberta e nos confina

árvore do pensamento que sonha o fruto

aves que são dilemas de flores e desencontros

e línguas de um fogo humano absoluto.

 

Lisboa, 16 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 
                                                      “Fire Bird” por Rodena Borisova

 

terça-feira, 16 de outubro de 2012

1 - observação de aves




a ave

controversa

cruza a ilusão do arco-íris

como uma flecha

é uma palavra tão sóbria

tão de pedra pungente

tão de segredos e de cantos

sobre este céu submersa

e este sorriso de  lucerna

de asas abertas

no frémito de luz insone

das estrelas

que acolhem gritos

e vice-versa

arriscas o rumo ténue

da esperança cúmplice

deste sinistro adejar

dos fantasmas

de frio e de fome

ave perversa

que me devora
as entranhas
num silêncio urgente. 


Lisboa, 15 de Outubro de 2012

Carlos Vieira


                                                               “Shadow Bird” por JayZuck