quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Abuso da posição dominante


 

 

arrancara alguns cabelos

em sinal de boa fé tinha garantido a madrugada

e a compostura do efeito molhado de gel

 

a fim de celebrar a escritura

com uma das mãos escondeu as “partes”

a outra tremer de frio fez a assinatura

 

o homem ficara irremediavelmente só

porque devem-se honrar os compromissos

e apertar o nó da gravata

 

havia o odor da tinta permanente

que o levou daquela exigência burocrata

a um lugar que o deixou distante

 

seminu e perplexo

leu e aceitou todas as cláusulas do contrato

no notário dos negócios do tudo ou nada

 

Lisboa, 17 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

 

 

2- Observação das aves



Estava de pé sobre a falésia, a dois passos do abismo e não tinha medo de ninguém.
As gaivotas eram rabiscos no céu e o mar de pequena vaga, encrespado, era todo seu.
Ele coroado de sal viu passar as cegonhas, nuvens dentro de navios, cães que levavam os cegos pelos ares e as aves de rapina junto das andorinhas.
Reconheceu o melro que falava a sua mãe, o seu vizinho do 
lado e pareceu-lhe que viu também, o de baixo. Tantos homens amputados, os que falam sozinhos e os outros, os dos bons ofícios e dos maus. Tudo aquilo lhe era estranhamente familiar, até a chuva que aparecia para os dias cinzentos.
Para onde iam com tanta pressa com os olhos virados ao contrário, será que fugiam?
De repente tremeu, não sabe se de medo ou daquele frio de há muitos anos, num país abandonado. Sentiu-se perdido, sem saber de que lado estava o abismo.

Lisboa, 17 de Outubro de 2012
Carlos Vieira

Fogo posto de palavras


 

 

Tronco ressequido que ao lume se destina

onde ainda se reacendem despedidas

em pequenos afluentes de carvão e de resina

navegam palavras ávidas de encontros

onde se reabrem as antigas feridas

no lume brando e na memória cristalina

um unguento mágico que dos confrontos

da penumbra nos liberta e nos confina

árvore do pensamento que sonha o fruto

aves que são dilemas de flores e desencontros

e línguas de um fogo humano absoluto.

 

Lisboa, 16 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 
                                                      “Fire Bird” por Rodena Borisova

 

terça-feira, 16 de outubro de 2012

1 - observação de aves




a ave

controversa

cruza a ilusão do arco-íris

como uma flecha

é uma palavra tão sóbria

tão de pedra pungente

tão de segredos e de cantos

sobre este céu submersa

e este sorriso de  lucerna

de asas abertas

no frémito de luz insone

das estrelas

que acolhem gritos

e vice-versa

arriscas o rumo ténue

da esperança cúmplice

deste sinistro adejar

dos fantasmas

de frio e de fome

ave perversa

que me devora
as entranhas
num silêncio urgente. 


Lisboa, 15 de Outubro de 2012

Carlos Vieira


                                                               “Shadow Bird” por JayZuck


sábado, 13 de outubro de 2012

A preparação física está a dar cabo de mim...


A preparação física está a dar cabo de mim. Hoje levei a minha filha à ginástica, esperei por ela uma hora e meia, os atletas das mais diversas modalidades passavam por mim, naquela pose de deuses acabados de sair das nuvens ou esbaforidos, muito perto da eternidade, serenos e elegantes como se a dimensão dos problemas da vida não lhe oferecesse qualquer receio e se por caso paravam, era para fazerem um compasso de espera, se concentrarem e definirem qual a linha de ataque mais favorável.

Eu quase deitado no sofá, pousava o olhar de mãe em mãe, de pai em pai, procurando-lhe o calcanhar de Aquiles e definindo-lhe o perfil deformado, liam os seus livros indiferentes à desenvoltura do meu olhar, pouco consentâneo com a proeminência do meu abdómen e preguiça do meu refastelamento, navegavam muito distantes e compenetradas, nesses longínquas latitudes que as últimas gerações de iPads e smartphones permitiam, à distância de um clique.

Depois olhei para a rua, de bicicleta ou em corrida inúmeras pessoas faziam o seu jogging matinal, de fim-de-semana, pouco a pouco fui ficando enjoado, o mundo era o estádio universitário que andava às voltas, na minha cabeça.

Eu estava cansado, muito cansado, as pessoas entraram para dentro de mim de ténis, faziam flexões, alongamentos, cambalhotas, um suor frio escorria, abundantemente, pelo meu corpo, sempre tive este tipo de excreções, muito à flor da pele.

Umas vinham para perder peso, outras por causa do coração, outras para ganhar músculo, para manterem a forma, ninguém queria morrer cedo, iriam vender cara a derrota, eu olhava perplexo para aquela gente tão boa, tão sã, tão regurgitante de vida.

Procurei acompanhá-los e logo tropecei, incapaz de compreender a gramática de todo aquele frenético movimento, sobretudo, inepto para encontrar o sincronismo, entre a velocidade feérica do estádio dos sonhos que na minha mente persigo e esta disponibilidade física e mental dos indivíduos a que a vida não pede qualquer urgência.

Despertei do círculo fechado desta reflexão, quando a voz suave da minha filha mais nova, me esclareceu todas as dúvidas, imbuída de uma inabalável veemência, no que respeita à esforçada grandeza, de alcançar ao ar livre, o peso pluma, a liberdade dos próximos quarenta e cinco minutos. Esforço derradeiro, de forma a convencer os que me rodeiam, de que tenho mais olhos que barriga.

- Vamos pai, hoje prometeste que irias correr comigo!

 

Lisboa,13 de Outubro de 2012

 

Carlos Vieira

 

 

Dívida



A dívida aumenta.
A do país e a nossa.

Cada manhã sabemos
que se acumula a dívida.
A grama que pisamos
é dívida.
A casa é uma hipoteca
que a noite vai adiando.
E os juros na hora certa.

Ao fim do mês o emprego
é dívida que aumenta
com o sono. Os pesadelos.
E nós sempre mais pobres
vendemos por varejo ou menos,
o Sol, a lua, os planetas,
até os dias vincendos.

A dívida aumenta
por cálculo ou sem ele.
O acaso engendra
sua imagem no espelho
que ao reflectir é dívida.

A eternidade à venda
por dívida.
A roça da morte
em hasta pública
por dívida.
A hierarquia dos anjos
deixou o céu por dívida.
No despejo final:
Só ratos e formigas.
 
CARLOS NEJAR