quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Fogo posto de palavras


 

 

Tronco ressequido que ao lume se destina

onde ainda se reacendem despedidas

em pequenos afluentes de carvão e de resina

navegam palavras ávidas de encontros

onde se reabrem as antigas feridas

no lume brando e na memória cristalina

um unguento mágico que dos confrontos

da penumbra nos liberta e nos confina

árvore do pensamento que sonha o fruto

aves que são dilemas de flores e desencontros

e línguas de um fogo humano absoluto.

 

Lisboa, 16 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 
                                                      “Fire Bird” por Rodena Borisova

 

terça-feira, 16 de outubro de 2012

1 - observação de aves




a ave

controversa

cruza a ilusão do arco-íris

como uma flecha

é uma palavra tão sóbria

tão de pedra pungente

tão de segredos e de cantos

sobre este céu submersa

e este sorriso de  lucerna

de asas abertas

no frémito de luz insone

das estrelas

que acolhem gritos

e vice-versa

arriscas o rumo ténue

da esperança cúmplice

deste sinistro adejar

dos fantasmas

de frio e de fome

ave perversa

que me devora
as entranhas
num silêncio urgente. 


Lisboa, 15 de Outubro de 2012

Carlos Vieira


                                                               “Shadow Bird” por JayZuck


sábado, 13 de outubro de 2012

A preparação física está a dar cabo de mim...


A preparação física está a dar cabo de mim. Hoje levei a minha filha à ginástica, esperei por ela uma hora e meia, os atletas das mais diversas modalidades passavam por mim, naquela pose de deuses acabados de sair das nuvens ou esbaforidos, muito perto da eternidade, serenos e elegantes como se a dimensão dos problemas da vida não lhe oferecesse qualquer receio e se por caso paravam, era para fazerem um compasso de espera, se concentrarem e definirem qual a linha de ataque mais favorável.

Eu quase deitado no sofá, pousava o olhar de mãe em mãe, de pai em pai, procurando-lhe o calcanhar de Aquiles e definindo-lhe o perfil deformado, liam os seus livros indiferentes à desenvoltura do meu olhar, pouco consentâneo com a proeminência do meu abdómen e preguiça do meu refastelamento, navegavam muito distantes e compenetradas, nesses longínquas latitudes que as últimas gerações de iPads e smartphones permitiam, à distância de um clique.

Depois olhei para a rua, de bicicleta ou em corrida inúmeras pessoas faziam o seu jogging matinal, de fim-de-semana, pouco a pouco fui ficando enjoado, o mundo era o estádio universitário que andava às voltas, na minha cabeça.

Eu estava cansado, muito cansado, as pessoas entraram para dentro de mim de ténis, faziam flexões, alongamentos, cambalhotas, um suor frio escorria, abundantemente, pelo meu corpo, sempre tive este tipo de excreções, muito à flor da pele.

Umas vinham para perder peso, outras por causa do coração, outras para ganhar músculo, para manterem a forma, ninguém queria morrer cedo, iriam vender cara a derrota, eu olhava perplexo para aquela gente tão boa, tão sã, tão regurgitante de vida.

Procurei acompanhá-los e logo tropecei, incapaz de compreender a gramática de todo aquele frenético movimento, sobretudo, inepto para encontrar o sincronismo, entre a velocidade feérica do estádio dos sonhos que na minha mente persigo e esta disponibilidade física e mental dos indivíduos a que a vida não pede qualquer urgência.

Despertei do círculo fechado desta reflexão, quando a voz suave da minha filha mais nova, me esclareceu todas as dúvidas, imbuída de uma inabalável veemência, no que respeita à esforçada grandeza, de alcançar ao ar livre, o peso pluma, a liberdade dos próximos quarenta e cinco minutos. Esforço derradeiro, de forma a convencer os que me rodeiam, de que tenho mais olhos que barriga.

- Vamos pai, hoje prometeste que irias correr comigo!

 

Lisboa,13 de Outubro de 2012

 

Carlos Vieira

 

 

Dívida



A dívida aumenta.
A do país e a nossa.

Cada manhã sabemos
que se acumula a dívida.
A grama que pisamos
é dívida.
A casa é uma hipoteca
que a noite vai adiando.
E os juros na hora certa.

Ao fim do mês o emprego
é dívida que aumenta
com o sono. Os pesadelos.
E nós sempre mais pobres
vendemos por varejo ou menos,
o Sol, a lua, os planetas,
até os dias vincendos.

A dívida aumenta
por cálculo ou sem ele.
O acaso engendra
sua imagem no espelho
que ao reflectir é dívida.

A eternidade à venda
por dívida.
A roça da morte
em hasta pública
por dívida.
A hierarquia dos anjos
deixou o céu por dívida.
No despejo final:
Só ratos e formigas.
 
CARLOS NEJAR
 


quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Teu corpo meu barco imaterial



Quem sou eu?
Em que momento da tua luminosidade
me perdi?
Qual o teu lado mais negro?
Este frio que me transe
serão apenas teus olhos
que abandonam
uma parte de mim?

A tristeza que irradias
será a quietude onde te aguardo?
Tu me desconheces
e, no entanto, a tua dor  
se adequa à minha ausência.

Atingimos os mais altos cumes
e temperaturas
que proporcionam a duração das distâncias
que acolhem a memória das partículas
do teu corpo
que se pode decompor em música.

E, se a velocidade da tua sombra se apodera
dos meus dedos desertos
como posso sobreviver
neste dilúvio da chuva e de cinza
que cai
ou a este momento de trevas?

Sobre a carne cálida e sequiosa
nos teus lábios entreabertos
deflagram improváveis realejos
murmurando inéditas partituras,
reencontramo-nos a caminho
do mar amniótico interior e ancestral
no deslumbramento do teu corpo
aceso na curva das ondas
onde podemos de novo escutar
um sussurro, uma azáfama de beijos
no regresso ao eco líquido e seminal.

Karlsruhe, 9 de Outubro de 2012
Carlos Vieira

                                León Ferrari  “Declaraciones de Scilingo, Nunca Más” 1995


domingo, 7 de outubro de 2012

Sonhos em 3D pela alameda


 

 

Filigranas de Outono, a bordejar o céu cinzento desta Alameda, de um tempo de tubos de

escape.

Nuvens de folhas, em remoinho perseguem-no, enquanto não o revestirem, não vão

descansar, enquanto não o cercarem no beco, como a fome de uma pequena matilha de cães

abandonados.

Aceitaria fazer de morto ou fingir de árvore derrubada, a história da intervenção dos bichos

mais adiante é que ainda lhe faz cócegas.

De resto, aquela humidade da terra que sente nas costas, pareceu-lhe o início de uma nova

vida ou talvez do crescimento das asas, sentiu-se por isso, naquilo que deveria ser a sua queda,

mais perto do céu.

Sentou-se num daqueles bancos clássico de tábuas de madeira pintadas de verde, a resistir ao

frio que anoitece nos seus pensamentos.

Divaga no xadrez de luzes dos prédios em frente. Vai reconstituindo os afazeres e conflitos

domésticos, daqueles vizinhos também eles de passagem, com tudo tão arrumado.

O bispo branco no seu movimento traiçoeiro e oblíquo comeu o cavalo, enquanto uma família

numerosa prosseguia, no seu frugal jantar.

Um casal de namorados que se preparava para a inocência desastrada do primeiro beijo

encostado a um tronco de uma amoreira, foi devorado pela máquina de lavar, da

marquise do 1.º andar, ali sobre a minha direita.

O mundo está estranho em Outubro, a Alameda está quase nua e quase morta, estranho

enigma é aquela nudez primordial.

Lá vamos, muito cegamente, a caminho do cadafalso, do caos, de olhos vendados, tropeçamos

na desconhecida pureza da neve, confundimos a alergia com o desabrochar das flores e

deixaremos de saber distinguir o perfume e as cores da fruta madura.

Nós os citadinos passamos a correr pela vida, porque estaremos sempre atrasados e quando

chegarmos ao destino, vamos descobrir que já é Verão e desistir de todas as outras

estações.

De qualquer forma, o aumento do preço dos bilhetes, não nos permite que nós tenhamos

outra dimensão nos sonho.

 

Lisboa, 7 de Outubro de 2012

Carlos Vieira