quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Poema da insensata cupidez




Tudo empalidece nas minhas mãos
Tocado de frio em mim tudo estremece
E definha na penumbra sua etérea beleza
Se vivo em cada vocábulo um esplendor
Ou por um dia a mais perseguida utopia  
Precede-me uma tristeza húmida e indolor
De perder o mundo em estéril melancolia.

A órbita ruidosa de constelações de gente
Em mim reclamam se me afasto no deserto
Se posso ser o rio que acende as palavras
Em sonhos de astros e aldeias esquecidas
Transplantados no poema de coração aberto
Logo soçobram nas águas paradas da razão.

Não sei de onde me vêm esta tão sôfrega pulsão
De para dentro de mim trazer todo o universo
De tudo possuir numa gaiola de palavras
De capturar o momento único e feliz num verso
Na luz que entardece nas cidades a natureza
Presunçosa fé de ter poder de torná-lo eterno.


Lisboa, 3 de Outubro de 2012
Carlos Vieira



terça-feira, 2 de outubro de 2012

Lebre


Lebre

relâmpago animal

que corre sobre a erva

elegante

a abraçar a morte

de chumbo

 

Lebre

de orelhas no ar

a florir na planície

o nariz sobre o orvalho

e a esperança

de vida

 

Lebre

inquieta de cães e de pólvora

galgando a noite de cinza

foge da morte

em direção à urgência

das madrugadas

 

Lebre

da impaciência

perde sobre a meta

no auge

por um corpo

para a tartaruga.

 

Lisboa, 2 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 
                                                              “Pensador” de Barry Flanagan

CARTA DE ALFORRIA



este poema aguarda
os que se assustam
da porta que se abre
da porta que se fecha
da chave na ranhura
dos dentes cerrados
na liberdade e na loucura
da corrente de ar

de espreitar o círculo do medo
e de fecharem os olhos
das mãos crispadas de raiva
das mães

os que se assustam
das mãos estrangulando
a vergonha
da carta das viúvas
que ainda se desconheciam
das notícias inesperadas
e das que há muito esperavas

guarda nas rimas
o silêncio do medo
das alturas e dos abismos
dos lugares que são do vazio
e das multidões
e dos sobressaltos
da paz e da guerra

guarda os desse medo
feroz do contratempo
que é a fome dos seus
e de todos os outros
dos que receiam
em não haver tempo
e daqueles sobrevivem
com todo o tempo do mundo
a uma insensata solidão
a titubear os estribilhos
das canções
dos que apenas murmuram
cansaço e desolação
em busca de um poema
que seja o passaporte
a viagem e o salvo conduto
a ponte e a passagem
para um país de coragem
carta de alforria
do campo de concentração
latente dentro de nós

Lisboa, 1 de Outubro de 2012
Carlos Vieira

domingo, 30 de setembro de 2012

E se o amor abalar a Teoria de Locard


 

 

Passou por aqui

a infinita tristeza do seu gesto

o olhar manso que se desprende

a sinfonia da respiração pausada

podia sublinhar

partículas de veneno a pairar

no ar beijado pelos seus lábios

o perfume  de convocar

o desígnio dos pássaros

no eco distante da sua voz

agora tão longínqua

e a feliz contaminação

do seu pensamento

a inconfundível pegada

dos seus pés que tinham asas

no seu voo nocturno

posso esboçar a auréola

da sua ausência

ainda fresca

ainda sem rumo

sei de tudo e porque partiu

e o que aqui ficou

contar-vos-ia

mas não quero falar

depois de perder a vida

não posso dar o meu amor

“ à morte”.

 

Lisboa, 30 de Setembro de 2012

Carlos Vieira

 

                                                                   Imagem no Blog de Barry

 

“Apenas uma vida vivida para os outros é uma vida que vale a pena”

Albert Einstein

 

 

sábado, 29 de setembro de 2012

Fugaz fulgor


 

 

 

Fiquei ali mergulhado na atenção que as cintilações de licra e de pele me despertaram sobre o espelho de água. Perseguia-a, naquela esteira de espuma, a sintonia perfeita do seu “crawl” , a touca azul, de onde despontavam breves madeixas do cabelo loiro.

Antevia que seriam verdes os seus olhos, escondidos por detrás dos óculos de natação e esperei que abandonasse a piscina, deusa esbelta escorrendo água.

Talvez se secasse à minha frente, podia devolver-lhe a toalha, que ela deixaria cair intencionalmente.

Até que oiço uma voz feminina um pouco ríspida, que me diz “Peço desculpa, mas esta é a minha mesa e o meu café!”

Eu quase me engasgo com o prosaico croissant misto, balbucio algumas palavras de justificação, atordoado com a visão que me atravessou o pequeno-almoço.

 

Lisboa, 29 de Setembro de 2012

Carlos Vieira

 

Luminescências de souto 3


 

 

Sopram forte os primeiros ventos de Outono e ninguém estava à espera. No largo do antigo palacete apodrece o luar e oiço gritos - há uns tempos que oiço gritos cada vez mais perto - aos quais se sucede o silêncio e reconheci os Nocturnos de Chopin.

Abruptamente, aqueles foram interrompidos por um estrondo. Uma árvore que viu cederem definitivamente as suas raízes já podres ou um homem esmagado pela dimensão do seu sonho de viagem, tudo isto me assaltou e é recorrente.

Não está fora das cogitações daqueles menos habituados ao mundo das árvores, a hipótese meramente académica da queda, sempre desamparada, de um fruto maduro. Muito embora, não se tivéssemos apercebido de qualquer rumor impaciente de animais que lhe deveria seguir.

Ali, afastado da cena principal, envolto em fumo, após compilação de gestos e palavras murmurados, distingui o espectro de um homem que vendia castanhas.

Cedi à tentação, de sujar as mãos, de tinta de jornal e de cinza e pedi uma dúzia, enquanto aquele calor sólido me descia às entranhas, podia sucumbir sobre o restolhar inquieto dos tempos e das folhas dos castanheiros e voltar a ouvir, o tal piano solitário.

 

Lisboa, 29 de Setembro de 2012

Carlos Vieira

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Luminescência de um souto 2


 

 

a criança entra pelo souto

as castanhas são sonhos

e caiem nas linhas de água

frutos secos que se afogam

antes de verem a luz do dia

e se dormem sonos eternos

hão-de sonhar peixes de rio

vidas penduradas em anzóis

faiscando sangue e azul metal

e escamas e sorrisos e mãos

frágeis e os pequenos sóis

que resistem presos à linha.

 

Lisboa, 28 de Setembro de 2012

Carlos Vieira