sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Luminescências de um souto


"… And the sun was shining as it’s never shone before in 1944. Our chestnut tree is in full bloom. It’s covered with leaves and is even more beautiful than last year.”

               Anne Frank , Diary of a Young Girl

 

 

 

na cúmplice aquiescência

dos castanheiros

uma leve brisa

tece na clorofila

um devaneio de água

que a nuvem de corvos

empalidece

regurgitando

estridentes vocábulos

e no ventre macio

do ouriço verde

um pequeno coração

amadurece

 

Lisboa, 28 de Setembro de 2012

Carlos Vieira

 

 

                                     “Chestnut tree in Blossom” de 1887, por Vincent Van Gogh

terça-feira, 25 de setembro de 2012

A infância a preto e cinzento


 

 

Tordos e melros

habitantes de sombra

ou da prata.

Naquele dia aprendi

o v de visco.

 

Aves tão tímidas

entre flores de oliveira,

tão rara e ausente

e tão de Outono.

Lembro-me da primeira fisga

e da sofisticação

dos elásticos franceses.

 

Reflexos de pássaro

nos olhares de azeitona,

tão madura

tão escura

tão pura.

Foi coisa de que nunca gostei.

 

Entretanto,

escorre um rio de luz

em silêncio

no lagar de azeite,

onde meu pai era Marte

entre máquinas,

para mim o seu regresso

de madrugada

provindo do Inferno,

era triunfal.

 

O silêncio do tordo

o chilrear do melro

com muito pouca acidez.

Tenho os pés molhados,

da humidade da chuva

dos anos sessenta.

 

Os aliados do vento

nas oliveiras

de desgrenhadas

cabeleiras.

No sopé das serras

fotos a preto e branco

de camponeses

que varejam

o mundo rural

e a lavoura.

 

Adormeço,

enquanto lá fora

nas intempéries

cinzentas da infância

esvoaçam

tordos e melros.

Tudo sonhos e lampejos

a preto e branco

ou mais correctamente,

a preto e a cinzento.

 

Não me lembro de outras cores,

de qualquer forma, agora não me dão jeito.

 

Lisboa, 24 de Setembro de 2012

Carlos Vieira

 

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Natureza quase morta



Depois de derramar
todo o leite do dia,
vejo um branco mar,
avançando no seu amor
pelo dourado pinho,
na sede da toalha de linho.
Vazia, a garrafa na mesa  
é um farol prenhe de luz
de fado e de tristeza.
Porém, não adianta chorar
sobre o leite derramado.

Lisboa, 24 de Setembro de 2012
Carlos Vieira

domingo, 23 de setembro de 2012

sulco...


sulco

da cor da terra

esventrando a névoa

onde o teu rosto evoco

e o grão se esconde

da sofreguidão

das aves

 

Lisboa, 23 de Setembro de 2012

Carlos Vieira

Renovação




Tom Jobim: "São as águas de março fechando o verão, é promessa de vida no meu coração".

 

uma litania de frágua

dentro de nós

um canto de pedra

de folhas que caiem

e de musgo eterno

e de trevas e de fome

 

uma voz rouca

um sonho a pão e água

a decência

no clamor da razão

e da demência soterrada

 

o silvo das lâminas de vento

ávidas

do norte magnético do futuro

o dardejar cego das adagas

espreita sobre o muro do tempo

 

deste ninho de águia

sei agora as garras  e o olhar

que libertam sobre o abismo

o pensamento

em que volto a escutar em silêncio

o raiar de outro amanhecer

 

um beijo da brisa

na minha mão aberta

e aprendi a voar e perdi o medo

e oiço este estampido

que antecede o homem que cai

que se sucede ao estrépito

de poder mudar o mundo

 

Lisboa, 23 de Setembro de 2012

Carlos Vieira

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Fantasia verosímil


 

 

Olha irónica

em ziguezague

 

mais célere fulmina

de desprezo

 

tão inchada

destila de soberba

 

e, por cima do ombro

sorri de desdém e de sombra

 

Pitonisa

de nariz empinado

rumina

um silêncio de aço

 

foi então

que a luz de gesto ocasional

e de uma súbita ternura

se acendeu naquelas mãos crispadas

 

foi então

que expirou em estertor

a solidão snob

 

eu fui testemunha da visão

do milagre

sob a lua gelada

do coração da distância que explode

da queda da máscara

 

Lisboa, 21 de Setembro de 2012

Carlos Vieira

                                  "A Máscara Japonesa" de Gustave Courtois

 

 

 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

História "em segunda mão"




passa a água sobre a ponte
e as quatro estátuas dos trabalhadores
abandonados ao verdete
da História
onde agora
aos seus pés 
acenam em protesto
apenas os sapos
a coaxar novas madrugadas
passa por nós o Neris
e sigo o cardume
dos nomes do extermínio
que nadam pelas esquinas
das pedras cinzentas
dos prédios
e se cruzam nas correntes
que estremecem no peito
por tantas vezes e vozes
nas duas margens
o eco da História
sitiado

Vilnius, 17 de Setembro de 2012
Carlos Vieira



                                                   Vilnius Things to Do Tip by IreneMcKay