sábado, 18 de agosto de 2012

universalidade





pronto

aqui me encontro

envolto num turbilhão

de fumo branco

um pé firme na Terra

uma mão cheia de nada

ausculto o eco das letras

nas palavras ditas

sondo-lhe o encanto

na voz rouca do vulcão

no primeiro voo da escrita

quando a sós

na vertigem do céu

de um qualquer poema

ousamos o mistério e o fogo

e se desatam nós de espanto

frente à imponência do caos

que moldamos no barro

helicoidal e paciente

na curva da idade

que nos permite distinguir

o fulgor e a errância

de cada ponto

na miríade de pó suspenso

a tristeza vencida

dos rostos cintilantes de gente

que em cada estrela distante

são a semente prenhe

dos sonhos

na sua elipse de regresso

à humanidade



Porto de Mós, 18 de Agosto de 2012

Carlos Vieira

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Chuva de Verão

Lá fora
chove no jardim
em agosto
dentro de mim
solta-se
o teu véu de seda
de ave táctil
e incansável imaginação
tecida
em puro acaso
notável descoberta
seminua
eras tão fresca e frágil
fora de mim
brisa do murmúrio
de um tempo diáfano
por ti caíam as bátegas
leves lâminas
nas asas do desânimo
no fim da tarde
o veneno dos segredos
por revelar
para surpresa da água
reconheço-te imaculado
corpo que foste antes do pó
e de refletida mágoa
serás sempre
quando fores fora de mim
 erguida estátua
onde já só irá correr
a memória de um amor
censurado
ali exatamente no coração
do lago
morto de sede e dos olhares
de pedra
assim permaneces
incólume e inexpugnável
meu bravo rio interior
do início da viagem
sem regresso
do medo até  à luz
sobre a suave alegria corroída
da acidez  do teu silêncio
e da chuva
áspera é a minha mão
que te percorre
o rosto
temperada pelo bálsamo
das tuas lágrimas  
apenas saberás de mim
que é Agosto
e que chove de novo lá fora
no jardim
agora que és esta imagem
que ficou de ti
já sinto de novo
a passagem do tempo


Lisboa, 16 de Agosto de 2012
Carlos Vieira




quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Mutações


Num corredor vi uma seta que indicava uma direcção e pensei que aquele símbolo inofensivo fora outrora uma coisa de ferro, um projéctil inevitável e mortal, que entrou na carne dos homens e dos leões e enevoou o Sol nas Termópilas e deu a Harald Sigurdarson, para sempre, seis pés de terra inglesa.
Dias depois, alguém me mostrou uma fotografia de um cavaleiro magiar; uma corda com várias voltas rodeava o peito da sua montada. Soube que a corda, que antes andara pelo ar e submetera os touros na pastagem, não era mais que uma gala insolente do arreio dos domingos.
No cemitério do Oeste vi uma cruz rúnica, lavrada em mármore vermelho; os braços eram curvos e afastados e rodeava-os um círculo. Essa cruz apertada e limitava a outra, de braços livres, que por sua vez figura o patíbulo em que um deus padeceu, a «máquina vil» insultada por Luciano de Samosata.
Cruz, corda e flecha, velhos utensílios do homem, hoje rebaixados ou elevados a símbolos; não sei por que maravilham, quando não há na terra uma só coisa que o esquecimento não apague ou que a memória não altere e quando ninguém sabe em que imagens o traduzirá o porvir.


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen

Sobre a lucidez

Tendo em vista com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam , a si próprios e aos outros, as suas ideias delirantes, perdi para sempre a segura certeza da lucidez da minha lucidez"

Livro do Desassossego - Fernando Pessoa

terça-feira, 14 de agosto de 2012

reencontro



eu estou de pé

depois da urze dourada

o teu corpo macio

está de bruços

é uma romã inquieta

pendurada na penumbra

nós estamos nus

como os astros inacessíveis

e a beleza dos números

tu és a gazela desconfiada

imediatamente antes do prado

que não resiste à tentação

de poder regressar  

trazes a inesquecível ironia

do teu sorriso tangente

a esculpir

os teus lábios perfeitos

fulgindo no olhar

que já foi triste

o teu desejo ouço-o

arqueando as tuas vértebras

no frémito do vento

és neste odor que dança

e que libertas

que me prendes ao sul

dos teus abraços

gume de palavra

nunca esquecida

na minha boca ferida

desliza a enrolar-se

nos pensamentos

que me traem

e a que me entrego

que serão afinal

na foice do desespero

a tua linha de fuga





Lisboa, 14 de Agosto de 2012

Carlos Vieira


                                                          Pintura de Boris Malafosse

Bosques De Mi Mente - Nostalgia

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Crime sem castigo






na geografia de cristal

há a subtil intercepção

de um tempo sem razão

há a sombra do punhal

na vertigem silenciosa

no itinerário das árvores

é pura a voz  estrangulada

e na sinfonia dos pássaros

não escorrem as lágrimas

que se sabem mais íntimas

de um olhar perturbado

ou próximas das estrelas

pelo vidro embaciado

da solidão das janelas

a testemunha protegida

observa o lento escorrer

do sangue  e apodrecer

do cadáver e da sua vida

apaga o rosto do assassino

a astúcia montada da teia

no peito tudo fica gravado

num depoimento cristalino

pelo periscópio da lua cheia



Lisboa, 13 de Agosto de 2012

Carlos Vieira

                                                       “Witness to Murder”  Bem Walker