quinta-feira, 9 de maio de 2013

Estreito de Ormuz


I
Estreito
de qualquer viagem
cujo rumo
num momento
nos confronta
com o homem imperfeito
esses deuses com defeito
nas tréguas
lambendo as feridas
feitas a colher  pérolas
da ilusão
do livre pensamento
contra recifes
os remoinhos e as ideias
e todas as correntes
ávidos de especiarias
ainda assim
destilado da humana espuma
dos dias
ergue-se o manuscrito
de uma desconhecida  
coragem
um último testamento
numa folha de papel cavalinho
por cima das vagas
onde se escreve a pulso
se ouvem os gritos
de tanto condenado
às tormentas da vida
enquanto ao longe
na miragem
das colinas contíguas
a brisa traz-nos
o canto dos pastores
e aromas
de uma antiga Pérsia

Lisboa, 9 de Maio de 2013
Carlos Vieira

domingo, 5 de maio de 2013

À timidez dos gestos na penumbra


 

 

 I

a noite

nasce na febre das sementes

um fruto

de coração franco e aberto

 

II

na orla breve

do fósforo bruxuleante

uma forca de luz inquisidora

ou um foco da ternura que anoitece

 

III

por uma fresta

esgueira-se a lua insolente

acorda a fera

a carícia nocturna em quarto crescente

 

IV

escuro como breu

um estertor no seio da floresta

a fatal faísca

ateou a tragédia de um fogo interior

 

 

V

a fénix renascida

das cinzas

no trilho da insónia

adiciona ao silêncio a solidão fecunda

 

VI

a esfera imóvel a contraluz

forja de cócoras uma figura

o planeta segue o rumo das trevas

em câmara lenta sem coragem esconde-se um homem

 

VII

a frescura de uma abóbada de folhas

a luz tépida da clorofila

uma frase lapidar

o ocaso de uma ideia

 

VIII

a fibra e a sombra de um princípio

no fim do túnel a claridade

a beleza do instante

que antecede o ataque do felino

 

IX

uma fenda secreta no muro

a farpa do tempo

a clarividência dos peixes

por cima do mar devorando as nuvens

 

X

o silêncio putrefacto

de tantas cores e frutos sonhados

o regresso à fertilidade

da fé nas palavras agridoces

 

Lisboa, 5 de Maio de 2013

Carlos Vieira

 


 

sábado, 4 de maio de 2013

Voo em flecha e queda em espiral



 

Flecha

flor de vertigem

hélice de espanto.

 

Alforria

do arco do tempo

na elipse de um sonho

de mão firme.

 

Vai seu sibilino canto

serpenteando

premente

viagem sem palavras.

 

Escutando  

no seu murmúrio

o restolhar da memória urgente

no fim da floresta.

 

Ali

desferes o golpe fulminante

na maçã

de um louco amor.

 

Ali

tombou aniquilada

a ilusão dos pássaros

do livre pensamento.

 

Foi ao encontro

do esperanto da morte

agora

única expressão da liberdade.

 

Nessa fresta

apenas franqueada

ao eco da última palavra

que se soltou.

 

Na queda em espiral

reinventaste

o voo eterno

no espírito cego da flecha.

 

 Lisboa, 4 de Maio de 2013

Carlos Vieira

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Homens Estátuas


Homem estátua
Equilibrando-se imperturbável
Como se estivesse morto
Sem pestanejar 
Como se o medo e a fome
não o inquietasse
Pisca o olho malicioso
a uma rapariga
E assusta sem carlos propósito
uma criança
E a vida continua
As moedas que caiem 
no chapéu 
dão corda ao empedernido 
coração
do homem estátua
Nesta praça palco
simulacro
Onde os gestos
da ternura e gratidão
de vida vivida se imobilizaram
Ou se desaprendeu
de viver
Ou tratar-se-á de gente
que apenas estará
desempregada.

Lisboa, 1 de Maio de 2013
Carlos Vieira

terça-feira, 30 de abril de 2013

Herbário IV - Era uma vez


Hera hera
Hera hera hera
Muro muro muro muro
Hera muro hera muro hera

Era uma vez na janela
agora deserta 
o ágil e ardente amor
de Julieta e  de Romeu
pela noite fora.

Hera hera
Hera hera hera
Muro muro muro muro
Hera muro hera muro hera

Era o madrigal
de amor antigo
agora no altar vazio de um Deus
que não sendo para ali chamado
cedo se foi embora.
Hera hera
Hera hera hera
Muro muro muro muro
Hera muro hera muro hera

Cresceu cego e sôfrego
esse amor imortal
que a raíz das pedras
ainda chora
sem razão a toda a hora.

Hera hera
Hera hera hera
Muro muro muro muro
Hera muro hera muro hera

Era uma vez
as armadilhas do coração
as heras e os muros
o veneno letal
o amor de agora e o antigo
que o verdete devora
esse punhal do tempo.
.


Lisboa, 30 de Abril de 2013

Carlos Vieira
 

                                                         Varanda da Casa da Família Capuleto, em Verona

domingo, 28 de abril de 2013

Herbário III - Urzente


 

 

Urze

sobre o árido planalto

poema

que urde a terra

verso

quebrado

incauto

que se solta no sono aflito

estremunhado

iluminando o granito

de um destino.

 

 

Urze

que mordes a sílaba

e o pó do trilho antigo

e do pensamento

esse brejo

onde brota o silêncio

de um grito

na paisagem

sobre o esquecimento

e a irrelevância

da morte

na brisa voam em bando

os cálices púrpura.

 

Urze

onde urge

e rimam

num mesmo tempo

a fragilidade

e a resiliência

onde ancestral

pulsam o sangue humano

e um punhal

e cantos

de aves de passagem

num sonho

de novo horizontes.

 

Lisboa, 28 de Abril de 2013

Carlos Vieira

 


                                                      “Heather Weather” por Neil McBride

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Herbário I - A efémera beleza e a razão eterna dos cravos



O seu perfume exortava
perdurava intenso nas narinas
afiando o gume agridoce
das palavras que antes eram
apenas e só murmúrios
as plantas apresentavam-se
num silêncio perturbado
animadas da ousadia púrpura
abandonaram os jardins
o sorrisos cínico das janelas
eram eloquência do sangue
que não se quis derramado
sobre a véspera incólume
erguiam seu precário sonho
raíz na alma do cano da G3
o júbilo violento que inebria
frescura carmim que crescia
pelo país erguido em pétalas 
numa suave firmeza vegetal
um prelúdio de chuva fina
prenhe da esperança pueril
de homens duros e antigos
que nunca tinham chorado
agora o cristal das lágrimas
de raiva e amor incontido
lavando perplexos rostos
de penas e tristeza lavrados
calando baionetas no coração
esplendor de subtil clemência
de um gesto que faz renascer
na memória a beleza efémera
e a razão eterna dos cravos.

Lisboa, 26 de Abril de 2013
Carlos Vieira
 

                                   “Mulher em Verde com um Cravo” por Henri Matisse