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domingo, 26 de janeiro de 2014

Vamos morrer...

"Vamos morrer. Eles sabiam disso, e suas últimas palavras a suas famílias foram: ‘Eu amo vocês.’ Mesmo no sofrimento, suas últimas palavras foram de amor… Pessoas que poderiam ter se salvado e em vez disso correram de volta para salvar outros. Se a humanidade é capaz disso, como posso perder a esperança na humanidade?"

Ellie Wisel

sábado, 25 de janeiro de 2014

Novela curta

NOVELA CURTA



O meu amigo Moreira mandou uma vez construir, num quintal velho que tinha, uma casa elegante para um cão. Encarregou d'isso um mestre de obras, que, atraído pela estranheza do assunto e pela suposta loucura do criador do proposito, construiu uma espécie de chalet digno de ser pago, sem sobras, por alto preço.
Quando a casa para o cão estava pronta, o Moreira compareceu e aprovou. Elogiou o mestre de obras, e foi-se embora, meditando.
Dias depois, quando o mestre de obras apareceu com a conta, o Moreira pediu-lhe que o acompanhasse ao quintal velho. Chegados ali, disse-lhe com enternecimento, apontando para a casa do cão.
- Olhe, mestre, meta a conta ali dentro. Ela é que é o cão.

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Excerto de Virgínia Woolf

"Sexta, 15 de novembro [1918]
[T.S. Eliot] admira imenso Mr. Joyce. Mostrou-nos uns três ou quatro poemas para lhe darmos uma vista de olhos – o fruto de dois anos de trabalho, visto que ele trabalha o dia inteiro num banco e, segundo o seu modo racional de pensar, acha que o trabalho regular faz bem às pessoas de constituição nervosa. Fiquei mais ou menos consciente de um seu sistema, muito intricado e altamente organizado, de crença poética; devido às suas cautelas, e ao seu cuidado excessivo na escolha da linguagem, não descobrimos muita coisa sobre essa crença. Acho que ele é um adepto das “frases vivas” e acredita que há uma diferença entre estas e as frases mortiças; acha que se deve escrever com um cuidado extremo, respeitar sintaxe e gramática; e, assim, fazer esta poesia nova florir dos estames da mais antiga poesia."
Diário de Virginia Woolf, tradução de Maria José, Bertrand de Portugal, p. 132

Pequeno excerto de "O Fio da Navalha"

Neste mesmo dia em Paris, no ano de 1874, nascia Somerset Maugham.

"– Está muito apaixonada por Larry?
– Vá para o diabo. Nunca amei mais ninguém em toda a minha vida.
- Então porque casou com Gray?
- Tinha de casar com alguém. Ele era doido por mim e a minha mãe queria que eu casasse com ele. Toda a gente me dizia que era uma sorte ter-me livrado do Larry. E eu gostava muito do Gray; ainda gosto………. – Penso que realmente não o amava, mas uma pessoa passa bem sem o amor. Lá no fundo era pelo Larry que eu suspirava………."

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Gala e Dali

Quando eram já muito velhos, o célebre pintor Salvador Dali e a sua mulher, Gala, tinham domesticado um coelho, que depois passou a viver com eles, sem os abandonar um instante; gostavam muito dele. Um dia em que tinham de partir para uma longa viagem, estiveram a discutir até muito tarde, durante a noite, o que haviam de fazer com o coelho. Era difícil levá-lo, mas não era menos difícil confiá-lo a alguém, porque o coelho desconfiava dos homens. No dia seguinte, Gala fez o almoço e Dali deliciou-se com ele, até ao momento em que percebeu que estava a comer um guisado de coelho. Levantou-se da mesa e correu para a casa de banho para vomitar no lavatório o seu animalzinho querido, o fiel companheiro dos seus dias de velhice. Gala, em contrapartida, sentia-se feliz por o seu amado lhe ter penetrado nas entranhas, as ter acariciado lentamente, transformando-se no corpo da sua amante. Não conhecia consumação mais absoluta do amor do que a ingestão do bem-amado. Comparado com esta fusão dos corpos, o acto físico do amor parecia-lhe um prurido irrisório.


Milan Kundera, A Imortalidade

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Penso à vezes...

«Penso às vezes que vale a pena morrer. Que fui muito pouco ditosa ou muito pouco jeitosa porque nunca soube arrumar a minha vida à feição do meu carácter. (...) Foi-se-me a idade dos contentamentos fáceis e das ilusões (...)»
Solidão II - Irene Lisboa

sábado, 18 de janeiro de 2014

FORAM OS LIVROS...


Foram os livros, todos os livros que lemos, que nos ajudaram, através das palavras, a dar uma nova vida às coisas fazendo-as renascer. Bernadim mostrou que o rouxinol não era apenas um pássaro catalogado pela ornitologia. E muita da tristeza do seu canto foi escutada, séculos depois, por Florbela Espanca, Pela leitura aprendemos a gostar de relações delicadas e amplificadoras como a do rouxinol com a tristeza. Esta que cobre as suas penas. Ele que com o canto narra a sua alma. A tristeza que se expande no seu voo e se recolhe na palavra rouxinol. E a alegria do rouxinol (o canto) serve, paradoxalmente, para exprimir a nossa tristeza. Não é uma metáfora nem uma figura de estilo. É ainda uma maneira de compreender a vida a partir dos nomes. Uns simples, como o Melro, de Junqueiro, ou a Cerejeira, de Torga, outros enigmáticos como Raomomar, de António Maria Lisboa.


Manuel Hermínio Monteiro, Uma Rara Magia

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Have you ever been in love?


Horrible isn’t it? It makes you so vulnerable. It opens your chest and it opens up your heart and it means that someone can get inside you and mess you up. You build up all these defenses, you build up a whole suit of armor, so that nothing can hurt you, then one stupid person, no different from any other stupid person, wanders into your stupid life…You give them a piece of you. They didn’t ask for it. They did something dumb one day, like kiss you or smile at you, and then your life isn’t your own anymore. Love takes hostages. It gets inside you. It eats you out and leaves you crying in the darkness, so simple a phrase like ‘maybe we should be just friends’ turns into a glass splinter working its way into your heart. It hurts. Not just in the imagination. Not just in the mind. It’s a soul-hurt, a real gets-inside-you-and-rips-you-apart pain. I hate love.

Neil Gaiman, The Sandman


domingo, 12 de janeiro de 2014

People sometimes...

• People sometimes ask me about all of the science in my work, thinking it odd that I should wish to combine science and art, and assuming that I must have some inner pledge or outer maxim I follow. But the hardest job for me is trying to keep science out of my writing. We live in a world where amino acids, viruses, airfoils, and such are common ingredients in our daily sense of Nature. Not to write about Nature in its widest sense, because quasars or corpuscles are not "the proper realm of poetry," as a critic once said to me, is not only irresponsible and philistine, it bankrupts the experience of living, it ignores much of life's fascination and variety.

Excerto do Livro Negro

"Rüya estava deitada de bruços na cama, perdida na suave e quente penumbra, coberta pelas muitas dobras e ondulações da colcha quadriculada de um azul delicado. Do lado de fora, elevavam-se os primeiros sons da manhã de inverno: o ronco de um carro de passagem, o clangor de um velho ônibus, o estrépito das panelas de cobre que o fabricante de salep compartilhava com o doceiro na calçada, o apito do guarda encarregado do bom funcionamento do ponto dos dolmus¸ os táxis coletivos. Uma luz fria e plúmbea infiltrava se pelas cortinas de um azul escuro. Ainda zonzo de sono, Galip contemplava a cabeça de sua mulher, que emergia da colcha quadriculada: o queixo de Rüya se enterrava no travesseiro de plumas. A maneira como ela reclinava a fronte tinha algo de irreal, despertando em Galip uma grande curiosidade pelas visões maravilhosas que se desenrolariam na sua mente, ao mesmo tempo em que lhe inspirava medo. A memória, escrevera Celâl numa de suas crônicas, é um jardim. "Os jardins de Rüya, os jardins de Rüya...", pensara então Galip. "Não pense, não pense neles, vai ficar roído de desejo!" Contemplando a testa da mulher, porém, ele seguia pensando."

Livro Negro, Orhan Pamuk

sábado, 11 de janeiro de 2014

NO TENGO NADA CONTRA USTED


No tengo nada contra usted, se lo aseguro. He frecuentado a muchos como usted, me he encariñado con algunos, y ellos me han acompañado a lo largo de la vida. Si le restrinjo el acceso a mis escritos no es por hostilidad, sino más bien para no fatigarlo, para que después no se me acuse de abuso o de falta de consideración. Es cierto que en mi juventud recurría mucho más que ahora a sus servicios. Pero la vida me ha enseñado que para mí su utilidad, perdóneme que se lo diga, no depende de que esté siempre dando vueltas a mi alrededor, sino de un factor que podemos llamar eficacia. Con esto no quiero ofenderlo ni hacerlo a menos: mi respeto por usted es absoluto. Podemos decir que lo considero indispensable, pero en dosis moderadas. Un gran poeta dijo que usted, cuando no da vida, mata. Y yo no quiero que me mate ni que mate mis textos, señor adjetivo.

 David Lagmanovich

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Diário


25 de Janeiro de 1976, domingo

Neva. Bebo um café e como um «babá» na pastelaria feminina de Jodoigne. O convívio, a vida de grupo, continua a parecer-me um problema insolúvel, mas deixei de ouvir a frase que o exprimia, quando me levantei esta manhã. Aos homens escapam muito mais coisas do que aos animais e às plantas________
Não gosto de ver nevar quando estou sozinha. Ouço uma música adequada à neve. Como já disse, a pastelaria é feminina.
A Quinta, o pão, absorve todo o tempo. São sempre os mais pobres que trabalham, que trabalham no tempo até o abolirem.
As crianças imaginam que a vida dos adultos, quando estão com elas, é sempre um prazer.
Limpar a casa, ver o chão brilhar e espelhar o que imagino, e é real, fazer almofadas trabalhando o tecido para o repouso, acender a luz quando faz noite, e olhar e olhar-me sob outra perspectiva, são já belos motivos para viver.
Mas nada escapa a esta tristeza doce que é também provocada pela minha existência limitada do tempo.
Volto para casa, fazer croquetes. Mas antes leio uma frase de Histoire de l'idée de nature:
*«Mas a natureza não é assunto de um só sábio.»*

Kissing dead girls



“As she bends for a Kleenex in the dark, I am thinking of other girls: the girl I loved who fell in love with a lion--she lost her head over it--we just necked a lot; of the girl who fell in love with the tightrope, got addicted to getting high wired and nothing else was enough; all the beautiful, damaged women who have come through my life and I wonder what would have happened if I'd met them sooner, what they were like before they were so badly wounded. All this time I thought I'd been kissing, but maybe I'm always doing mouth-to-mouth resuscitation, kissing dead girls in hopes that the heart will start again. Where there's breath, I've heard, there's hope.”
― Daphne GottliebKissing Dead Girls

Os direitos inalienáveis do leitor


Instantâneo


Mesmo aqui em frente, é meio-dia, 10 de Janeiro, fixo-me no pássaro amarelo a esvoaçar, à volta de uma flor vermelha. Podiam ser um canário ou uma rosa mas não eram, não sei o nome, nem de um nem de outro, o que pode tornar tudo mais misterioso. De repente, o pássaro caiu fulminado e a flor desabrochou, podia ter sido assim, mas não foi. Não, a flor não ficou depois ali a pairar, sobre aquele pássaro morto, ambos seguiram o seu destino. Para embelezar a história daquele momento, precisamos de misturar na dose certa, um pouco de mentira mas que seja verosimilhante, fica bem o verde do cedro como pano de fundo, um pingo de veneno, não se pode morrer de AVC, um pouco de amor sem lamechices, a poesia deve ser lenta e a morte súbita, sem muitas explicações e depois bebê-la de um trago.

Lisboa, 10 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira



                                       
                                               Jan Zaremba, “Pássaro amarelo, flor vermelha”

O Medo


O medo era uma herança incómoda na vida do Senhor Ibsen. Não só o medo que os outros podiam sentir por causa dele, mas o medo que ele sentia na análise vulnerável do seu comportamento íntimo e emocional. Tinha um profundo horror às suas próprias reacções, embora fosse capaz de fazer a previsão da gravidade do seu estado de espírito. Intuía quando um infeliz diálogo se desviava para uma zona de violência, sem no entanto conseguir reprimir a sua ira contra alguém. Nunca o Senhor Ibsen poderia controlar o medo que sentia porque o medo era o único sentimento que o ligava à infância e aos pais. Em momentos infectados de maldade, quando a vida dos dois parecia rodopiar num ralo infernal, o Senhor Ibsen considerava a Rita como modelo de caracterização da própria mãe, e dessa forma sentia-se incomodado por tantos estragos causados pela sua consciência devoradora. O que ele deixava escapar do seu comportamento agressivo podia ser entendido por uma sequência de cópias ou representações de atitudes e situações desencadeadas durante a infância, sentindo a presença da Rita como algo precariamente humano e exposta ao seu instinto fulminante e esmagador. O Senhor Ibsen incomodava-se cada vez mais com o seu medo indecente desempenhado pelos seus actos recheados de insanidade moral. Sempre que ele e a Rita se enfrentavam, a mãe e o pai surgiam num ponto transtornado do palco na sua memória como duas silhuetas que representassem uma cena a ameaçar a vida numa complicada ciência de inutilidades conjugais. Havia em tudo o que ele observava diante daquele palco de representação familiar, em todo aquele espaço íntimo e dramático, uma monstruosidade real que o obrigava a meditar sobre a cenografia do medo. O medo que ele transportara da infância e que agora o dominava por completo, corroendo numa alucinação triste e magoada toda a trama dos primeiros tempos de confiança e amor. Tudo a ficar sem história na sua vida, o medo a transformar-se na imagem da mãe que devora a sua própria cria. E o tempo abatia-se sobre ele e sobre todos os que viviam com ele como um caminho cheio de pó. Como um pano que desce sobre um palco onde o silêncio tem a orgulhosa tarefa de ocultar quem fomos e em que espécie de pessoas nos tornámos.

Em Brutal
Ulisseia, 2011

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Verdade e Mentira




Sei que há imensas coisas na história de uma família que são pura fantasia. Qualquer família. as histórias vão passando de geração em geração e a verdade vai-se perdendo. Quem conta um conto acrescenta um ponto, como se costuma dizer. Alguns talvez achem que isto significa que a verdade não consegue competir com a mentira. Mas eu cá não acredito nisso. Cá para mim, depois de todas as mentiras terem sido contadas e esquecidas, a verdade perdura ainda. Não anda a fugir de um lado para o outro e não muda com o passar do tempo. É impossível corrompê-la, assim como é impossível salgar o sal. É impossível corrompê-la porque é pura, sem adornos. É a matéria de que são feitas as nossas palavras. Já ouvi compará-la à rocha - talvez a bíblia - e não discordo dessa ideia. Mas a verdade permanecerá, mesmo quando a rocha tiver desaparecido. Tenho a certeza que certas pessoas discordam isto. Bastantes, aliás. Mas nunca cheguei a perceber em que é que nenhuma delas acredita. 

Cormac McCarthy, in 'Este País Não É para Velhos"

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Justiça


Os meus sentimentos

"deviam guardá-los, ainda lhe podiam fazer falta, e a mim não me serviam de nada, devia tê-lo aconselhado a guardar os sentimentos, nunca sabemos quando precisamos dos sentimentos, da latinha de fermento que está há anos na despensa, da camisola de lã que não é vestida há mais de cinco Invernos, nunca se sabe quando precisamos de coisas mesmo se nunca as utilizamos, não fosse essa incerteza e punha um anúncio no jornal, vendem-se sentimentos, estado impecável, como novos, oportunidade única, motivo mudança de vida, bom preço."


Dulce Maria Cardoso