Mostrar mensagens com a etiqueta Poesia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Poesia. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Gostava de me abrigar

Gostava de me abrigar
à sombra
das tuas mãos hábeis
e debaixo delas
ouvir teus longos dedos 
simultaneamente
a tamborilar
acompanhando
a chuva a cair a cair
desalmadamente
e a partir
desse momento infeliz
de amar em excesso
ser a um tempo
possesso e lúcido
e inventar
a ilha a emergir
a emergir
num país
como se fosses
receber de novo
um ramo de flores
e de espinhos
e lume
e as tuas mãos luminosas
de Primavera
a inventarem
outra vez
o veneno
e o perfume.
Lisboa, 6 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Escultura de autor desconhecido

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

À deriva na água doce


Sento-me
à popa deste navio
cansado de mim mesmo
e deixo o olhar ir para além
daquela esteira de espuma
e de esquecimento
pela bifurcação das ilhas
para onde a corrente
arrasta o pensamento
pairo com aquela gaivota
sobre o silêncio impenetrável
da floresta nórdica
ao longe a distante Estocolmo
observa indiferente
a confrangedora
falta de perícia e rumo
do navegador
em espelho de água doce
e de vida tão pouco exigente
perante a dor dos espoliados
e o tão pouco profundo
amor pelos outros
tanto abraço de afogados
e náufragos à deriva
que se querem salvar
a si próprios ou de si mesmos
ou deste mundo.
Estocolmo, 2 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Fotografia de autor desconhecido

Poema da tua ausência

Poema da tua ausência
Vejo-te
de costas
o mar de turquesa 
ao fundo
pudesse ser eu
o grito
e a onda
e a gaivota
contra o teu silêncio
a rajada de vento
o ranger do mastro
e a vela
que te fizesse
voltar ao mundo
nem que não fosse
o meu
se os teus beijos
pudessem ter sido
a espuma
que agora são carícia
nos pés descalços
e o perfume da maresia
te despisse ainda
o véu da ausência.
Lisboa, 29 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Pintura de Will Barnet

Indisciplina (Cesar Pavese)


O bêbado deixa para trás as casas estupefactas.
Nem todos se aventuram a passear bêbados
à luz do sol. Atravessa tranquilo a rua,
e poderia entrar pelas paredes dentro, pois as paredes estão ali.
Só os cães deambulam assim, mas um cão pára
sempre que sente uma cadela e cheira-a cuidadosamente.
O bêbado não vê ninguém, nem mesmo as mulheres.
Na rua, as pessoas que se perturbam ao vê-lo, não se riem
e gostariam que não estivesse ali o bêbado, mas os muitos que tropeçam
ao segui-lo com os olhos voltam a olhar em frente
com uma praga. Passado que foi o bêbado,
toda a rua se move mais lentamente
à luz do sol. E se uma pessoa começa
a correr, é alguém que não o bêbado.
Os outros olham, sem distinguir, o céu e as casas
que nunca deixaram de estar ali, ainda que ninguém as veja.
O bêbado não vê as casas nem o céu,
mas sabe que estão ali, pois num passo pouco firme percorre um espaço
tão claro como as franjas do céu. As pessoas, embaraçadas,
deixam de compreender o que fazem ali as casas,
e as mulheres já não olham para os homens. Têm
todos, dir-se-ia, medo de que de repente a voz
rouca se ponha a cantar e os persiga pelo ar.
Cada casa tem uma porta, mas não vale a pena entrar.
O bêbado não canta, mas mete por uma rua
onde o único obstáculo é o ar. Felizmente
não vai dar ao mar, pois o bêbado,
caminhando tranquilo, entraria também no mar
e, deixando de se ver, prosseguiria no fundo o mesmo caminho.
Cá fora, a luz seria sempre a mesma.

Os bois...

Os bois
prosseguiam
vagarosamente os dois
sem saber
e sem olhar para trás
rasgavam a terra
e naquela nesga
exponham os vermes
seduziam os pássaros
animavam as sementes
hoje não são mais
que memórias ancestrais
na sua mansa bestialidade
dinossauros do futuro
Lisboa, 25 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Noites de breu à procura III


No princípio
eram os pássaros
de fogo
emboscados
nos misteriosos
interstícios
a latejar
na tua pele
numa ânsia
de vulcão
num secreto
prazer
a fervilhar
armando-me
ciladas
nessa noite
as explosões
e as réplicas
do teu ser inteiro
inventaram
em mim
múltiplas
madrugadas
e tuas unhas
afiadas
a sulcarem
o meu dorso
riscando
caligráficas
as assinaturas
das constelações
em sangue e em luz
foi então
que nos perfumados
promontórios
do teu corpo
saboreei
o sal e o mel
do êxtase
enquanto a lança
incandescente
ía em busca
do coração
e acendia
divina a chama
e depois
do amplexo final
regressaste
àquela solidão
olímpica
e sem sexo
de ternura
asséptica.
Lisboa, 22 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Nu Azul III - Henri Matisse

Noites de breu à procura II


Jogamos toda a noite à cabra-cega
na dupla escuridão que habitamos
na câmara escura da nossa dupla solidão
desfiando a teia e a luz ténue e bruxuleante
que nos tolhe e incendeia e vai decompondo
com o ácido da nossa paixão desesperada
os negativos da nossa eterna procura.
Lisboa, 21 de Maio de 2016
Carlos Vieira

VOZES


Vozes queridas, vozes ideais
daqueles que morreram ou daqueles que estão
perdidos para nós, como se mortos.
Eles nos falam em sonho,algumas vezes;
outras vezes, em pensamento as escutamos.
E, quando soam, por um instante eis que retornam
os sons da poesia primeva em nossa vida,
qual música distante que se perde noite afora.
Konstantinos Kavafis
Tradução: José Paulo Paes

O HAVER


Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...
Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.
Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.
Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.
Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante
E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...
Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.
15/04/1962
Vinicius de Moraes
A poesia acima foi extraída do livro "Jardim Noturno - Poemas Inéditos", Companhia das Letras - São Paulo, 1993, pág. 17.

Cai a lua, caem as plêiades ...

Cai a lua, caem as plêiades e
É meia-noite, o tempo passa e
Eu só, aqui deitada, desejante.
Safo


Madrigal de um tímido


I
emboscado no canavial
estremece ao ver 
os pés descalços
que agitam
as águas do açude
irão despertar
nas profundezas
da alma
imprevisíveis monstros
II
no salgueiro
há um rouxinol aceso
uma boga beija
os lábios dela
no espelho de água
refletidos
apenas ele desconhece
os segredos
que se escondem
na sua boca
III
uma rã descansa
sobre o veludo verde
do nenúfar
ela entre os dentes
trinca uma flor silvestre
só quem pode
aproximar-se
pode distinguir
o alcance
dos seus perfumes
e sossegar
IV
entretanto a rã
pressentindo
o agitado coração
no canavial
coaxando
atira-se à água
como quem se despede
da vida
e a rapariga
por nada começa
a trautear
uma canção
de encantar
Lisboa, 19 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Que ilação podemos retirar...

que ilação podemos retirar
de um cão rafeiro e vadio
que passa por nós a correr?
Lisboa, 16 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Garatujar

um dia
hei-de voltar
aos rabiscos
e arabescos
a essa frugalidade
de garatujar
o mais incipiente
conhecimento
do mundo
Lisboa, 16 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Poema a propósito do equilibrio inútil


Busco o incessante
equilíbrio
a emoção
sobre a prancha.
Navego a onda
que se desenrola
abraço o seu pescoço
de corola e de mulher
ausente.
Aspiro a fragrância
sou engolido
pela paz profunda
e por marítima revolta.
Percorro os verdes
e os azuis vários
a líquida transparência
e o caos nos sonhos
de sereia.
Triunfo sobre a espuma
que beija minha pele
cravejada de escamas
do ouro da praia.
Meu corpo cuspido
pelo oceano
enfeitado de algas
adquiriu o esplendor
do sal devastado
de solidão.
Lisboa, 16 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Imagem de autor desconhecido

domingo, 21 de agosto de 2016

Miles Davis & John Coltrane - Kind of blue


Árvore do fruto permitido


Uma a uma te desfolho
árvore do esquecimento
sem saber do teu nome
sei de ti no sangue incendiado
onde te afasto te escolho
abraço-te no pensamento
que me alegra e consome
és a sombra e a fome
que me consola e me cerca
mulher que me desperta
e a seguir me apunhala.
Lisboa, 15 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Que mistério quis desembrulhar

que mistério quis desembrulhar
quando comprei o teu olhar tão doce
com três rebuçados
Lisboa, 15 de Maio de 2016...
Ver Mais

Pedras com sonhos de curta duração


Chegou ao lago
escolheu uma pequena pedra
fez-lhe um afago
memória esguia e abaulada
que colocou
entre o indicador e o polegar
fez o gesto antigo
de infância
deu-lhe um seco impulso
de chicote
ouviu-se o eco no ar
do pequeno seixo
a palpitar
sobrevoando
ou a chapinhar
mais à frente
ali fez meia dúzia
de círculos
no espelho de água
por momentos levemente
encrespado
o pássaro pedra
após o voo rasante
por fim exausto
mergulhou profundamente
voltando
à sua vivência mineral
agora em águas profundas
na sua mão
ficou uma leve
sensação de vazio
um pequeno resquício
de lama
e sopro de vida
que partiu.
Lisboa, 15 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Tempo quase morto


Está um tempo de trovoada
de interlúdio
de antecâmara
de véspera de água
de orquestra e respirações
tempo em suspenso no início
da submarina sinfonia
de regresso a um silêncio
de insectos a adivinharem emboscadas
tempo de clarividência de moribundo
de nós na garganta de um amor que se desfaz
que se extinguiu na incandescência
da palavra inventada para aquele momento
tempo do estertor nas entranhas de um mundo
que certamente se vai desmoronando
segundo a segundo
enganamo-nos nesta tépida solidão
de cada um sermos
ao fim e ao cabo únicos
e ao mesmo tempo todos
deslocados
tempo de sorrisos
e melancolias e penumbras
de alguns sobreavisos e de relâmpagos
cintilando nas almas e corações
construímos um tempo do conforto
servindo a Deus e ao Diabo.
Lisboa, 15 de Maio de 2016
Carlos Vieira

As flores estão mais belas no jardim...

as flores estão mais belas no jardim
será porque dantes passava por elas
e agora elas passam por mim?
Lisboa, 13 de Maio de 2016
Carlos Vieira