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sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Histórias de tempo de amor e morte


I
ela era pedra quente e relógio de sol
ele apenas a sombra esguia do ponteiro
a refrescar o silencioso mármore da sua pele
II
ela era silício de flores e o relógio de água
ele uma fonte inesgotável
a suplicar trégua ao tempo de traidores
III
aquela serenidade é quase eterna
não fosse a impunidade que suporta
e a noite que os liberta
IV
o corte da carótida pelo punhal
que he ceifou a vida definiu o labor do cinzel
e lhe esculpiu o amor na morte
V
quantas vezes sinto que morri em ti
o eco na memória da tua mão e coração de pedra
medra ao roçar a tua combinação de seda
VI
por quanto tempo seremos o desencontro de dois rios loucos
que sorrimos sem graça e que morremos aos poucos
para quando outra vez tréguas de água viva
numa qualquer alcobaça
Lisboa, 30 de Julho de 2016
Carlos Vieira


A piedosa interpretação de uma natureza morta


Foi o primeiro investigador criminal a chegar junto do cadáver, deparou-se com o cabo esculpido em madrepérola do punhal, no peito da vítima, no meio de um auréola de sangue e um rasgo vertical na camisa branca desfraldada
anotou num pormenor de um botão que navegara num rio vermelho que tivera a sua nascente debaixo do corpo
em decúbito dorsal
enfiava as luvas de borracha e olhava um pouco mais inquisidoramente o rosto do indivíduo mas este manteve-se em silêncio a olhar para o vazio
enquanto isso, somente a barba de três dias lhe sobrevivia, procurou afastar os seus ancestrais pruridos de tocar no corpo sem vida, aperceber-se da progressão da rigidez cadavérica, foi afinando a sua relação com o morto e com a morte
na televisão acesa prosseguia mais uma etapa do Tour de France, enfatizava-se a distância dos fugitivos para o camisola amarela mas a sua meta era agora outra, procurou distanciar-se dos estímulos que o cercavam
avançou na sua busca de respostas, nas mãos e nas unhas bem tratadas do finado arquitecto que não metia pelos vistos mãos na obra, que medidas terá falhado? que ausência de luz não lhe permitiu evitar a sombra
ou melhor se defender do inimigo que o derrubou?
tudo leva crer ter existido luta, não sendo tarefa fácil lidar com aqueles noventa quilos de peso, continuou sozinho
a lutar com as suas dúvidas e a sua sede, a matutar, a erguer os primeiros cenários
enquanto os colegas dos homicídios e do local do crime não chegavam, interrogava-se que inimigos poderia ter
um homem solteiro de cinquenta e cinco anos aparentando estar bem de vida, que lado negro ainda lhe poderia esconder, que culpa a vítima poderia carregar e levar consigo
percorreu o chão à volta do Vasco cidadão tentando encontrar outros vestígios e detalhes, a olho nu, salvo um chinelo de uma marca conhecida que ali estava à deriva, era uma mancha de veludo no soalho flutuante, antes do sofá de pele, paquiderme inanimado, tudo parecia padecer de uma estranha arrumação
uma cascata de luz dos “led" espraiava-se pela sala, iluminando a encenação das amálgamas de gente e de bichos a penderem dos vértices dos quadros de arte contemporânea, espreitavam-lhe agora o desvelo de investigador curvado, uma inusitada “madona" piedosamente atenta àquele corpo familiar surpreendente simulacro de amor
preocupado em eliminar hipóteses e sedimentar certezas tinha entrado em módulo de imersão total, naquela cúmplice solidão de quem já não tem mais nada dizer e de quem somente agora começou a perguntar, sempre
demasiado tarde, com maior ou menor oportunidade
verificou a cicatriz antiga de uma fractura da tíbia e perónio, observou as partes mais íntimas despudoradamente
e prosseguiu até à zona onde a lâmina penetrara fulminante na epiderme, independentemente da opinião da medicina legal, procurou perceber ângulos de entrada e reconstituir o gesto do agressor
na retaguarda gerou-se um expectável sururu, alguém dava gritos que iriam culminar em choro, o defunto
não ficou, particularmente, impressionado e tão pouco o inquiridor
continuou a viagem rumo ao pescoço, sondou a boca entreaberta, os olhos agora cegos, deviam ter sido acutilantes, habituados a definir rumos e traços precisos, o nariz adunco e as orelhas quase agudas,
acentuavam-lhe um lado fantasmagórico
teve um súbito arrepio, devia esperar que o colega o ajudasse a virar um pouco de lado o cadáver, para lhe verificar as costas, percorreu com o olhar o tampo de secretária, ali próxima, forrado com pele verde alguns papéis amarfanhados pareciam pássaros desesperados, em preparação para levantar voo, ficou esperançado em encontrar naquele frenesim de papel, alguma explicação dos enigmas que o assaltavam e a definir a direção das múltiplas que o levaria até ao autor
respirou fundo e olhou à volta, era melhor esperar pelos colegas que duas cabeças podem chegar mais longe que uma, vasculhou a cinza de uma lareira com uma tenaz e no final, apenas o pó de uma antiga chama ou de um desvario
foi junto ao parapeito de uma janela que entreabriu, pela frincha deixou entrar uma breve corrente de ar e encheu os pulmões e deixou o seu olhar sobrevoar o circo dos néons e pirilampos das viaturas da polícia e dos bombeiros
e voltou para dentro de si, que raio se passou aqui? a morte com punhal já não se usa, nem há romanos, nem florentinos, nem nevoeiros londrinos, na hodierna traição a morte é uma benção
Lisboa, 24 de Julho de 2016
Carlos Vieira

Poema da lágrima quase ocasional

Poema da lágrima quase ocasional
Encosta-se
a uma sombra tímida
de Verão
no meio da praça
onde se eleva uma lança
de água
uma pequena gota
salpica-lhe a solidão
demora o gesto
no rosto brutal
a limpar
a lágrima acidental
do homem
que no seu desencontro
apenas chora
por dentro.
Grândola, Julho de 2016
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido

Fotomontagem


Na sua cabeça
sobrevive o destroço
de sentimentos
e a alegria de pêssegos
sem caroço
enredos melodramáticos
iluminados
por centelhas de lâminas
nos becos
teias de pensamentos
inconsequentes
e a devastação das pragas
de escaravelhos
fora de si
apenas a luz
enviesada dos vitrais
cruzando
o desespero das orações
o frémito
das gaivotas
ávidas de despojos
rodopiam
à volta do fantasma
esquálido
a cambalear
vigiam-lhe
pacientemente
o estertor final
a máscara de dor
desconhecem
que dentro de si
não existe carne
nem sangue
apenas o vazio
um silêncio
sem cor e musical
feito do labor
das linhas de água
em camas de musgo
breves luminescências
raiam-lhe
no olhar deserto
vestígios de mágoa
e desamor.
Lisboa, 20 de Julho de 2016
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido

Eterno retorno


A mera ausência
do terno gesto
a meio caminho
do teu rosto
de não saciar
a tua sede
deixou mudo
e eterno o Verão
deixar de poder
ouvir-te a ti
é como se
todos os pássaros
do mundo
fossem exterminados
é tornar-se peixe
que apenas habita
o mar profundo.
Esboço um jardim
suspenso
em memórias
à volta de perfumes
e da minúcia
e do detalhe
das sombras
que deixaste
que arrumaste
na nossa vida
dentro do poço
escuro de mim
busco a frescura
a subtileza
para as palavras
que podem
acordar-te
desse sono
e da loucura
do teu abandono
que só pode ser
a oportunidade
de reencontrar-te.
Lisboa, 17 de Julho de 2014
Carlos Vieira


O apocalipse após um sorriso


Ela
não se deu conta
daquela 
linha escura
que lhe descia
pela brancura
do rosto
nela
enquanto sorria
cintilava
a memória
de amêndoa
no sol posto
de um beijo
o mel
na janela do olhar
só soube
do sal
e da amargura
no amargar
do rímel
a entrar
pelo canto
da boca
só depois
perdeu a calma
e ficou louca
de uma loucura
definitiva
e sem alma.
Albufeira, 3 de Julho de 2016
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido

Poema à inútil eternidade


O saco de plástico
cheio de ar
de nada
levanta voo
uma ideia
sobe sobe
o gesto evasivo
um projeto
de estrelas
o amor passageiro
que se escapou
uma subtileza
a história breve
a transparência
do saco de plástico
leve leve
precário
onde nadou
o peixe vermelho
e transportou
o pão e o tempo
paira o saco
uma nuvem
como um sonho
que vive e vive
um devaneio
de vento
onde vai cair
ninguém sabe
poluir o mar
amarrar de novo
o peixe
amarfanhado
no desespero
de um momento
estandarte
rasgado a drapejar
sobre o sofrimento
lembrando
batalhas
sem sentido
por fim
enterrado
num baldio
pulmão do vazio
respirando
no ar que lhe resta
a festa
do país da inutilidade
da sua vida eterna
e sem raiz
que o liberte
da obscuridade.
Albufeira, 3 de Julho de 2016
Carlos Vieira


Primeiro dia de praia


Deito-me
na areia fina
na contingência
ausente
do seu corpo
dourado
e pressinto-lhe
peixes furtivos
mar bravo
beijos
de espuma
a despertar
memórias
entre farrapos
de bruma
de teus seios
ostensivos.
Lisboa, 2 de Julho de 2016
Carlos Vieira


Foto de Alex Bramwell

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Agent Provocateur


Um pixel
esse beijo
de mordida 
digital
e o sangue
a esvair-se
em downloads
sucessivos
pelo território
de plasma
da solidão
alagada
no écran
vermelho vivo
a morte
devagar
frame a frame
navegas
porque amas
o cadaver
esquisito
que se ergueu
do tablet
em disparos
contra o tédio
à Tarantino.
Lisboa, 27 de Junho de 2016
Carlos Vieira


"Agent Provocateur" Clif Spohn

A exaltação do corpo e das estrelas


O acordeão
exaltava na planície
uma urgência
de brisa
aquela mão
sôfrega
desconcertante
a soltar
botão a botão
a sua blusa
a deflagrar
no seu corpo
uma constelação
de estrelas
onde rodopiava
a febre e a festa
tão pueril
o baile da aldeia
mas no final
sobrepôs-se
em êxtase
um caleidoscópio
de essências
numa loucura
de resinas
a adornar
em frescura
e fogo a pele
o corpo seminu
iluminado
pelo cinzel
da lua
crescente
dentro dela
sobre o pinhal.
Grândola, 25 de Junho de 2016
Carlos Vieira

Foto de autor desconhecido


Imagem de autor desconhecido

A uma sílaba de distância


Não mais
soletro
na tua pele
memórias
de flor de sal
e vestígio de mel
agora
na minha língua
apenas essa sílaba
antes do pó
e da lágrima
esse pigmento
ancestral
em que o pincel
só faz um risco
a ferir a tela
talvez a cauda
de estrela
e esse clamor
imaculado
da ausência
talvez o estertor
de um uivo
de lâmina
ou de trompete
interrompida
a nota final
no beco sem saída
do amor
ou da vida
tudo a acontecer
à boca da noite
a lua
já não será
tua mão aberta
dentro de mim
calou-se a melodia
o grão de oferta
agora cresce
sem razão outro muro
uma erva de ilusão
e clorofila
o teu gesto límpido
o sémen triste
constroem
outro futuro
onde vai irromper
esse mistério
que apenas
germina
no coração
em silêncio
e subsiste
uma convulsão
de lanças
e de pétalas
a esgrimir
num dia de sol
as sombras
que nos acentuam
a distância e o fim.
Lisboa, 18 de Junho de 2016
Carlos Vieira

Memórias de Verão I

Memórias de Verão I
Foi numa noite de final de junho, ainda vinha até mim o murmúrio das conversas nas esplanadas misturando-se
com o estrugir das marés ao fundo, a maresia e o perfume dos cafés produziam uma estranha excitação o reencontro da melancolia estival. Estava cansado resolvi ir dormir.
Porque depois suceder-se-ia o passeio nocturno na marginal, de um lado, os automóveis ruminando de mansinho, os namorados de mãos dadas com promessas vagas, as famílias a lamberem colectivamente gelados de cone de baunilha e chocolate e conversas desinteressantes e despreocupadas, do outro lado, a brisa marítima e a areia molhada, haveria matizes de azul conforme havia lua ou era varrido o mar pelo farol, nos olhares sorriam romances de espuma e em silêncio engendravam-se projectos de tudo ou nada com filas de barracas brancas vazias.
Nessa altura acordei estremunhado, com o ruído dos bombeiros a entrarem pela janela, tinha-me esquecido da porta fechada com a chave por dentro como nos sonhos, junto à minha cama, ouvi uma voz feminina surpreendida de anjo com capacete que comentava:
"- Mas o seu filho já é tão grande!"
Lisboa, 13 de junho de 2016
Carlos Vieira

O fiasco


que o fiasco
seja apenas o momento triste
de um reencontro
com a nossa frágil condição
e da beleza
que existe escondida
na perspetiva
Lisboa, 11 de Junho de 2016
Carlos Vieira

Um lince de papel


De súbito
um salto felino
dos caracteres dos jornais
numa breve
o reflexo de um avistamento
a distância em silêncio percorrida
surge-nos na densa mata
das notícias
ao mudar de página
e nela desaparece
entre imagens de destroços
de um morteiro na Síria
o fogo da sombra sarapintada
no lince da serra da Malcata
preenche de espanto
dos apartamentos
de animais domésticos
e homens mansos e dos outros
em vias de extinção
e devora a boa consciência
das manchetes
Lisboa, 11 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Memória dos amores de Verão


O cerzir do véu
do olhar
temperado
por um solfejo
de espuma
essa fragância
da maresia
que se escondia
no sabor
das partículas
do seu corpo
eram também
a breve memória
da resplandecente
constelação
de um amor inominável
e fecundo

do marejar nas noites
de insónia
a infinita solidão
lançadas ao mar
as cinzas
do seu mundo
Lisboa, 10 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Nu Azul - Picasso

Poema para o mar interior


Dentro de mim
um mar encrespado
uma iminência de naufrágio
do navio uma pungência
não te vou acordar
agora que temos a vida
por um fio
não possas tu
confundir o amor
com esta nunca resolvida
urgência de partir
uma espécie de música
de oceano dentro de nós
aprisionado
manancial de vida
feita de outras tantas mortes.
Lisboa, 10 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Pintura de Maelo Tarkin

Sinfonia da insónia


Sentavas-te
ao meu lado
eu sentia
a brisa que afiava
as arestas
do teu silêncio
as palavras
parcimoniosas
desciam devagar
para o lençol
sopesadas
como bichos
maliciosos
ou batiam contra
a face da tristeza
golpeando-a
e desafiavam
janelas de música
sobre mares interiores
de par em par
desvairadas
na curva côncava
do teu olhar
deambulavam
pássaros
vislumbrava-se já
estâmpidos de cor
finais de festas
em êxtase
no recôndito
das noites
anunciava-se
um início
de uma guerra santa
e a chegada da viagem
o vício estenuante
da tua pele
a enclausurar
girândolas de luz
segregando
o sabor austral
e extraordinário
do teu corpo
a entregar-se
derrubando
as últimas muralha
do quarto
do nosso longo exílio
as armadilhas
de preencher o vazio
ferindo a melancolia
estremecendo
a estralejar de prazer
no vértice do futuro
de um novo dia
que irrompe
até se abater
sobre nós
um sono
de uma leveza
inevitável
em equilibrio
instável
com o peso
do perdão
e a grandeza
do esquecimento.
Lisbo, 7 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Gostava de me abrigar

Gostava de me abrigar
à sombra
das tuas mãos hábeis
e debaixo delas
ouvir teus longos dedos 
simultaneamente
a tamborilar
acompanhando
a chuva a cair a cair
desalmadamente
e a partir
desse momento infeliz
de amar em excesso
ser a um tempo
possesso e lúcido
e inventar
a ilha a emergir
a emergir
num país
como se fosses
receber de novo
um ramo de flores
e de espinhos
e lume
e as tuas mãos luminosas
de Primavera
a inventarem
outra vez
o veneno
e o perfume.
Lisboa, 6 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Escultura de autor desconhecido

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

À deriva na água doce


Sento-me
à popa deste navio
cansado de mim mesmo
e deixo o olhar ir para além
daquela esteira de espuma
e de esquecimento
pela bifurcação das ilhas
para onde a corrente
arrasta o pensamento
pairo com aquela gaivota
sobre o silêncio impenetrável
da floresta nórdica
ao longe a distante Estocolmo
observa indiferente
a confrangedora
falta de perícia e rumo
do navegador
em espelho de água doce
e de vida tão pouco exigente
perante a dor dos espoliados
e o tão pouco profundo
amor pelos outros
tanto abraço de afogados
e náufragos à deriva
que se querem salvar
a si próprios ou de si mesmos
ou deste mundo.
Estocolmo, 2 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Fotografia de autor desconhecido

Poema da tua ausência

Poema da tua ausência
Vejo-te
de costas
o mar de turquesa 
ao fundo
pudesse ser eu
o grito
e a onda
e a gaivota
contra o teu silêncio
a rajada de vento
o ranger do mastro
e a vela
que te fizesse
voltar ao mundo
nem que não fosse
o meu
se os teus beijos
pudessem ter sido
a espuma
que agora são carícia
nos pés descalços
e o perfume da maresia
te despisse ainda
o véu da ausência.
Lisboa, 29 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Pintura de Will Barnet