domingo, 28 de fevereiro de 2016

Passos de fantasma


Imagem de autor desconhecido

Noites 
de acordar repentinamente
no meio do sono
de me parecer voltar ouvir
essa inebriante melodia
já tão longínqua
dos pesitos pressurosos
de uma das filhas
que vinham esconjurar
fantasmas
aninhadas na minha cama
afinal era uma delas
que agora regressava
a casa
e somos nós
que não dormimos
por causa de fantasmas
de carne e osso
e elas hoje e sempre
as minhas pequenas
desconhecem a política
dos pequenos passos
e nesse vórtice
adolescente
querem dar
passos maiores
que a perna
como nos sonhos.

Lisboa, 1 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira

Vivo cercado...

Vivo cercado
no teu olhar
demorado
até se atear
um fogo
no rossio
do teu corpo
que interpelo
devagar.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira




FIRE WOMAN - Painting, 22x28 cm ©2005 by Frederick Epistola

Observatório I



Ave 
que pousa 
no meu sexo
que agora vai
cego guiado
pela tua mão
voltar a ver
tateando a curva
nocturna
dos teus ombros
o milagre
que é a visão
celestial
do teu corpo
estrelado.

Lisboa, 30 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira


Imagem da www de autor desconhecido

Brincadeira I



Lembras-te
havia a grande macieira
de maças camoesas
entre as nossa casas
naquela penumbra
perfumada
descobrir um ninho
era mais que o sonho
do qual desperto agora
repentinamente
oiço outra vez
a estridente roldana
com que içavamos
o balde de zinco
os rostos
afogueados da brincadeira
refletidos na água fresca
que matava a sede
e a mágoa
de uma vida inteira.

Batalha, 28 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira



Gustav Klimt - Macieira

Entre a madeira e o tempo

Entre a madeira e o tempo
silenciosamente o caruncho
deixa a serradura da poesia.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Aprisionei a TV...

aprisionei a tv
num móvel chinês
um dragão adormecido
Lisboa, 27 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

a minha marquise

a minha marquise
é um realejo
de luz
Lisboa, 27 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

outra vez sem vida me sinto ...

outra vez sem vida me sinto
de bronze de sino
a repercutir a morte
Lisboa, 27 de janeiro de 2016
Carlos Vieira

Desterrado, digo refugiado no Reino da Dinamarca


Senta-se
no Outono
no barco banco 
de verde tábua
cai a folha de ouro
que agora flutua
no seu olhar
de estátua
de azul
embargado
peixe de aquário
fora de água
refém do abismo
em julgamento
sumário
foi condenado
por perjúrio
e desmascarado
pelo verdete
das sereias.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

O Desterrado, Soares dos Reis

Por um fio



Sento-me na sinuosa
muralha da marginal
sucede-se um e outro
automóvel tardio
a resfolegar na noite
a soletrar o vazio
e o círculo vegetal
do alucinado farol
o marulhar das ondas
a lua é isco no anzol
um imperceptível rumor
na bóia sob a espuma
da solidão no infinito
bailado de um robalo
triste atraiçoado
no diáfono interlúdio
do quarto crescente
de um dividido coração
que o fio de linha ténue
pendura num simulacro
a que chamam vida
ou teatro de fantoches.

LISBOA, 25 de Janeiro de 2016

Carlos Vieira

Imagem de autor desconhecido

Poema a propósito da impossível coabitação


Eu não sou eu
olho-me de longe
aproximo-me de mim
olho-me nos olhos
para dentro de ti
desse precepício
onde não sei medir
ou pesar
quanto de mim
és tu
eu sou tu
em mim te
reconheço
observo-te
sem poder fugir
ocupaste-me
sem pedir licença
ao escrever
é a tua mão
que me guia
minha estrela
que na noite escura
na tua voz
me murmura
tu habitas
o meu canto
no entanto
sem ti
louco
como podia
ainda que rouco
da garganta
irromper
sei que
querendo
que a vida
fosse a amorosa
aritmética
de tu mais eu
vivo sempre
muito mais
os espinhos
que a rosa
essa falta
de métrica
por dentro
desse dilema
de querendo
amar-te
mais do que sou
do que tudo
te perdes
de mim
assim
para que possas
encontrar-me
inteiro
não te identifico
neste caos
do mundo
em que me cercas
esqueço
que és tu a mulher
luminosa
que me cega
e que existindo
em mim
desconheço
que vive
ao meu lado
sem saber
como sobrevive
e que me é
contudo
tão essencial
faz parte
do ar que respiro
amar-te.
Lisboa, 23 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Fulgor e cintilação


esta noite
de encanto
de instante
perplexo
da memória
cumprida
do cântaro
ancestral
do perfume
que inebria
do barro
o sabor
a beijo
da alegria rural
do solfejo
da água fria
do esplendor
do gesto
insaciável
sedução
na lâmina
da impossível
trégua
Lisboa, 21 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

O brilho do asfalto molhado...

O brilho do asfalto molhado
os lençóis de água
as nuvens baixas
a luz tépida
a nudez
nunca obscura
a vertigem felina
o vórtice do desejo
as lâminas faiscantes
um sorriso
que desarma
a criança a brincar
mãos sobrevoam o dorso dos afectos
a chave a dialogar na fechadura
condescendente o teu sempre hábil olhar
que acolhe na solidão e timidez
da penumbra o perdão
e a sabedoria
do coração.
Lisboa, 19 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Nocturna mota

Nocturna a mota
de escape livre
foi de súbito
interrompida
por metálico
estâmpido
no asfalto
a queda
de um anjo
de cabedal
a lua sorri
maternal
a dois tempos.
Lisboa, 19 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Estala o verniz...

Estala o verniz
e no fogo crepita
a raiva da palavra
que o silêncio desdiz
aquela que mordi
impaciente no rubor
indizível do oásis
que são teus lábios.
Lisboa, 19 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Para quem são os louros?


por momentos
o aroma do louro
confinou-me
a um antigo pátio
do meu tio avô
por vezes
na imortalidade
que nos transcende
não há muros
e reinamos
de folhas de louro
coroados
Lisboa, 16 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Ecossistema


As vacas
tosam as ervas
e o crepúsculo
As cegonha
hão-de vir desembaraçar
os fios de telefone
Vacas e cegonhas
de comum
sobre a planície melancólica
voam a baixa altitude
também adormecem e sonham de pé.
Lisboa, 16 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

deito-me sobre a erva...

deito-me sobre a erva
delicada experimentação
da eternidade
Lisboa, 16 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

no agitar da clorofila das ervas...

no agitar da clorofila das ervas
reconheço o meu futuro a emoldurar
os campos e os caminhos
Lisboa, 16 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Desconcerto


“Consenta-se"
paciente
nesta torre
de marfim
neste farol
de paciências
numa névoa
particular.
Concentra-se
fora de si
observando
a ignomínia
da evasão
que por fim
expurga
não existe
maior fuga
e mais triste
do que a daquele
que só em si
existe
e que o procura.
Consente-se
ao deleite
do puro
isolamento
náufrago
a tricotar
os dias
de espuma.
Consome-se
na partilha
dos átomos
e afirma-se
inteiro
em cada um
na retórica
do meio
e do fim
enquanto
sorves
o copo de gin
não sabes
se meio vazio
ou meio cheio.
Consola-se
numa babel
de cimento
armado
de papel
de sangue
e tinta
permanente
tamanha solidez
transporta
inquieta
fragilidade.
Curva-se
nas tentativas
curva-se
nas derrotas
abruptamente
se levanta
intrépido
e já cansado
de tanta inépcia
em desacordo
com o silêncio
cúmplice
de contradições.
Sustém pontes
de pilares
beijados
pelo rio
onde se cala
que assim pode
ir correndo
levar incólumes
os sonhos
da nascente
e deixa-los
na rebentação
da foz.
Exaurido
por um conluio
de etéreos
afetos
contem
a respiração
acalenta
a vã esperança
que dentro de si
o rouxinol
volte a encantar
a solidão.
Lisboa, 16 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Vizinha dê-me um pezinho de salsa...

- Vizinha dê-me um pezinho
de salsa.
E lá vai ela descalça
pelo jardim.
E quando regressa junto a mim
traz os pequenos molhos,
um sorriso assoma
na amêndoa dos seus olhos
tempera toda a manhã.
Nunca soube mentir
nem sei como ela descobriu
que não sei cozinhar.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2016
CarlosVieira

Poemas de gente que não se vislumbra


Gente
que vai morrer aos poemas
a quem não deixaram nada
que não deixam nada
viveram rente à miséria
e nela morreram em harmonia
viveram junto
às aves de rapina
e de sovina
gente sem amnistia
e que sorria
claramente vista
meticulosamente revista
pois não vá o diabo tecê-las
gente vista por outra
com óculos de osso de tartaruga
gente que não se vê
e outra
que não se enxerga
gente que não vê
mais longe
e outra de incurável
miopia.
Lisboa, 11 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Estrofe de verso quebrado


Estrofes
onde vive gente
cansada
a quem a companhia
cortou o gaz
as asas
as pernas
os pulsos
a jugular.
Tudo cortado
e saldado
morreram em paz
deixaram de ter dores
e dívidas.
Lisboa, 11 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Um poema de palavras desalmadas...

Um poema
de palavras
desalmadas
de gritos
a apunhalar
a noite
peixes afiados
de resistir
aos pântanos
à merda
ao raio
de tudo mais
que nos pode
acontecer
na puta da vida.
Lisboa, 11 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Um poema selvagem...

Um poema selvagem
mustang
que não se deixa montar
com o freio nos dentes
um poema
em que cada verso
seja um coice
certeiro a rimar
com o pó das estradas
e das estrelas
equilibrando-nos
na garupa 
de uma vida
insustentável.

Lisboa, 11 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Uma escrita sem espinhas....

Uma escrita
sem espinhas
descarnada
como crianças
sérias
de carne e osso
fugidas
das guerras
e da fome a sério
crianças sem fitas
e sem laços
com olhos de espanto
órfãs brincando
com espinhos
e estilhaços
Lisboa, 11 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Poema desgarrado


Garra é precisa
nem que a escrita
seja desgarrada
de versos brancos
que se afirma
onde nada se agarra
sem idade
como pegadas de sangue
a florir na neve
onde apenas rima
a lâmina gelada
da verdade.
Lisboa, 11 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Vivo dividido

vivo
dividido
entre destinos exóticos
de pimenta
e aromas domésticos
de hortelã
Lisboa, 11 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Aurora boreal

No almofariz
esmago
pigmento
de musgo
de casca de ovo
um canto de galo
de aldeia
invento ali
a aurora boreal
que nunca vi.
Lisboa, 11 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

toda a noite chove

toda a noite chove
sobre o meu
o dilúvio do teu corpo
sonho "eppur si muove"
Lisboa, 9 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Escultura precária



Para escuta e olha
geringonça
tímida estátua
num canto da praça
montagem
de pele e osso
de olhar vítreo
na penumbra
o coração
quase sem corda
bate-lhe
imperceptível
à flor da pedra
por debaixo
do tom plúmbeo
e da pele
agulhas de néon
ferem-na
esquálida
não lhe encontram
a veia
tudo para além
da incerteza do pão
e heroína
de desbotado sorriso
de baton
e ponteado de cáries
no colo que na noite
ofereces
acabará por pousar
um errante
manga de alpaca
com garrotes
de gravata e de vazio
que o alcool
por momentos afoite
num encontro
de desgastado calcário
abraçando
o bronze de burocrata
celibatário.

Lisboa, 5 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Escultura de autor desconhecido

um salmonete fresco grelhado...

um salmonete fresco grelhado
numa cama de grelos
e o resto
é lutar contra a corrente
da imaginação
no estuário do sado
a cintilar
Setúbal, 23 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Agreiro no olhar


Fenece-lhe
o verso
foge-lhe
a substância
tolda-se-lhe
o rosto
e a coragem
das causas
pouco a pouco
se apodera
de nós
o bafio
das casas
fechadas
sobre si
as palavras
do poema
do caruncho
que nos rói
a alma
são a serradura
que atiras
aos olhos
de alguém
e que o vento
te devolve.
Lisboa, 4 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

porque não se levanta já...

porque não se levanta já
o teu olhar sorrateiro
e tornando se vai
em folha d’ouro
de Outono
que toda
a tarde
cai
Lisboa, 4 de Dezembro de 2016
Carlos Vieira

Sonhos de anos de luz


Aqui estou
à espera da luz verde
enquanto isso
um ano passado
tempo de balanço
365 dias, 5 horas, 48 minutos e 48 segundos
mais coisa menos coisa
que andamos à volta do sol
o resto são contas de outro rosário
as do "banco mau"
e da austeridade criativa
estatísticas:
da emigração oportuna
e de desemprego de longa duração
do peso
das gorduras e das dietas
do coeficiente
de quem vive acima das possibilidades
quem nos trata agora da saúde?
já que esta não se pode dar
qual o universo
da pobreza envergonhada
e da outra riqueza desavergonhada?
qual o patamar
do mínimo de dignidade?
qual o número
dos refugiados e de refúgios?
qual o grau suportável
do aquecimento global
e da corrupção?
que se diz em larga escala
onde começa o sentimento
de justiça cumprida
e acaba a dos justiceiros
dos novos pelourinhos?
até onde podem ir
as chamadas famílias alargadas?
e qual o diagnóstico
dos dramas inconfessáveis
de algumas mães solteiras?
quais as cifras negras
da violência doméstica?
uma "branca" na memória
na percepção da indiferença
e na falsificação da realidade
em saldos?
quantos sobrevivem de escapadelas
e de evasões?
qual o limite da tolerância
e o efeito multiplicador do distanciamento?
qual o nível permitido
de decibéis de ruído e do silêncio aflito?
onde acaba a solidão
e começa o despovoamento
a desertificação?
quem conhece a beleza das pequenas coisas
e qual a sua dimensão?
quais são realmente os pequenos lapsos
e os que são incompreensíveis?
perguntamo-nos pelo fardo de culpa
que podemos carregar
a vida toda
quantos cidadãos vivem
em alheamento ou segregados?
qual a margem de desconhecimento
e o peso da ignorância?
vivemos um momento de imensa escuridão
ou encadeamento?
vive-se nesta matemática
contraditória
de afectividades e de retornos
cedemos à precariedade
e ao efémero
rendidos à inevitabilidade
perante o consumo imediato
a realização pessoal
pagamos com juros elevados
o preço da impaciência
e do isolamento
aprendemos a sobreviver
afastando-nos
ano após ano
dos outros
e (ou) de nós
desconhecemos
o lugar do equilíbrio
e o tempo do amor
vamo-nos desencontrando
progressivamente
outro ano
de saldo negativo
e de sonhos breves
de anos luz
no intervalo dos semáforos.
Lisboa, 3 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira