domingo, 2 de agosto de 2015

Rasgando horizontes



Ali estás
a tua pontiaguda
verticalidade
a coberto de um véu
de névoa
e um sol
a resfolegar
pousado no cume
da solidão
que escorre
pelos flancos
da tristeza
desce
um manto
de bruma
que o deixa
seminu
entregue
a si mesmo
na horizontal
o mau tempo
e o canal
eu e tu
aqui estamos
de novo
frente a frente
equidistantes
companheiros
em separadas ilhas
de alegria contida
com tantas viagens
por contar
e tanta despedida
e silêncios cúmplices
de permeio
nas entranhas
um grito
prestes a irromper
um vulcão interior
voz de negada misericórdia
a que se junta
à daqueles
que escalam
o alto pico da justiça
por fazer.

S. Jorge, 2 de Agosto de 2015

Carlos Vieira

terça-feira, 28 de julho de 2015

Subo...

subo
a escada em espiral
da noite
e da torre da madrugada
lanço as sementes
de um sonho
com raízes nas trevas
e os gestos precários 
dos afectos
da luz

Lisboa, 28 de Julho de 2015

Carlos Vieira

Uma pedrada no charco

Uma pedrada no charco
o teu rosto na água estagnada
uma leve ondulação
o teu sorriso que se esbate 
tristemente
os rios secos 
e os corpos cansados do Verão
a longa espera da corrente
de um turbilhão
que nos lave
que nos leve

Lisboa, 28 de Julho de 2015

Carlos Vieira

segunda-feira, 27 de julho de 2015

o meu reino que é deste mundo


oiço um motor de rega
monótono
uma libelinha atravessa o rio 
em voo rasante
um cachorro truculento
embrenha-se no canavial
o meu pai
encaminha a água
e perseguindo as toupeiras
pragueja 
eu obrigo
o grilo a sair da toca 
com as cócegas
de um feno

no próximo Verão
terei de pé
um novo mundo

Lisboa, 27 de Julho de 2015

Carlos Vieira

Enquanto esperava...

enquanto esperava
o bico de lacre 
no bebedouro
morreu só
de sede 
preso 
na gaiola agitada
das suas sombras

Lisboa, 27 de Julho de 2015

Carlos Vieira

domingo, 26 de julho de 2015

Escrita à flor da pele


Sabe do vagar
dos teus lábios
esquece o vento 
a sibilar
na penumbra
da sua pele
esse instrumento
de navegar o desejo
em esplendor
sabe da devassa
do relento
no súbito arrepio
interior
que a percorre
interprete equidistante
do mais subtil frémito
no amplexo da sua entrega
na cicatriz da dor
à superfície
quase morre
permanece
incólume
nesse momento
nada transpira
e tudo se cala
tacteando-a
sabe-a de cor
Lisboa, 26 de julho de 2015
Carlos Vieira


sábado, 18 de julho de 2015

Na orla de um referendo



Deito-me à sombra 
de mim mesmo
e do chapéu de praia
incrédulo
depois de um mergulho
de alma lavada
esqueço as penas
e as divídas
de ouvido no chão
oiço o bramir
das pequenas ondas
a ressoar 
na filigrana das pedras
da beira-mar
agito sem orgulho
o branco e alguma gordura 
do meu corpo
perante o escultural bronze
da maioria do veraneante
profissional
a refulgir na areia
escuto o pulsar
do coração da terra
uma ou outra gaivota
as andorinhas do mar
e as crianças
cabeças no ar
vão fazendo a pontuação
a brincar
soltando grasnidos
de Verão 
rasgando frestas 
no céu azul
interrompendo
na praia
pequenos dramas
anónimos
no murmúrio da multidão
que se entrega
e paira
que descansa
e desmaia
enterram a cabeça na areia
numa indiferença olímpica
ao sim ou ao não
da tragédia grega.

Albufeira, 5 de Julho de 2015
Carlos Vieira

"Construindo unidade, suportando identidade"

Rafael Argullo