sexta-feira, 3 de julho de 2015

Eroticamente II


Amar-te
dedilhando
os últimos confins
da tua pele
onde o beijo discreto
da brisa da tarde
acendeu o desejo
desmesurado
de qualquer morte
resgatar-te.
Lisboa, 30 de Junho de 2015
Carlos Vieira


Andrew Wyeth Painting

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Eroticamente I


Sobe o bambu
devagar
o caracol
enquanto tu
crepuscular
desces
sobre
o jardim interior
por pequena fresta
sinusoidal
penetra fálico
agora
um raio de sol
em estertor final
tu minha bandeira
que se agita
nas entranhas
esplendor
de bambu
com reflexos
do percurso
de prata do caracol.


Lisboa, 25 de Junho de 2015
Carlos Vieira

sábado, 20 de junho de 2015

Análise superficial do hábito externo


Saber dos segredos
inconfessáveis da tez
aquela cor
de quem dá início ao Verão
dos pequenos eixos
rumos mais ou menos incisivos
cercados seixos de angústia
altos e baixos relevos
de um rosto de meia idade
observar com minúcia
o tricotado mínimo da pele
onde se urdiu o desejo
e ainda há pouco
se pressentia o coração
e onde agora
desvendados aromas
se libertam
se confundem
jardim profícuo
onde se tornou difícil
o acesso dos pássaros
e do olhar
da posição das mãos
pode-se adivinhar
o silício do medo
um silêncio pesado
que ainda ecoa
uma memórias dos passos
que antecederam

na prece
e na alegria
interrompida
e que desagua em delta
e resplandece
em vermelha contradição
pela estranha
cumplicidade dos poros
no território
de um corpo abandonado
sobre as ervas
numa nudez ebúrnea
em que uma única ferida
no seio esquerdo
borbotando
se pode confundir
a um botão de rosa
que se animou
e o ermo triângulo
do seu sexo fechado
a um desespero sem nexo
em decúbito dorsal
último reduto
daquela violenta solidão
que avança
vertiginosamente
para todos os interstícios
do agora cadáver
que ninguém
reconhece
página voltada
abandonada
à eternidade
evidência
de beleza breve
da morte
que se confunde
com o sono.
Lisboa, 20 de Junho de 2015
Carlos Vieira


Desenho de Harry Clarke

A pequena tragédia diária das palavras por dizer


Procuro
a palavra
que supere
toda ausência
o momento
em que dê voz
a toda a injustiça.
Procuro calar
aquela
que foi raiz
do desencontro
e a outra que fez
a húmida cintilação
de um olhar.
Procuro,
mas apenas
recolho fruta
apanhada do chão
só as palavras
ressequidas
gastas
e banais
me chegam
à boca.
Apenas
ao cuspir
as suas sementes
acredito
que é possível
colher
um outro amanhã
de novas palavras
que talvez
nunca conheça
e que se juntem
algures
a conspirar
uma outra crença
na humanidade.
Lisboa, 12 de Junho de 2015
Carlos Vieira

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Sem golpe de asa


Sempre os pássaros
a tecerem
entre o verde das árvores
e o azul do céu
imperceptível
rendilhado
de puro voo e canto
esquissos
do regresso à solidão
preenchida
de efémeros reflexos
testemunhos
eloquentes
que deslumbram
a sombra furtiva
de quem se aquieta
na réstia
de um pensamento
que se apaga
sem golpe de asa.
Lisboa, 11 de Junho de 2015
Carlos Vieira


Exercício gímnico


Faz da ponte
uma metáfora
e do pino
que se segue
um verso branco
que se espraia
na espargata
de mais uma estrofe
alicerce
de todo um poema
em pontas
que se levanta do chão
e num salto mortal
descreve
o indizível
e ganha asas
mais uma estrela
daquela noite
enexorável
em que a mim
me faltou a respiração
e a outros
inquietos
falta tantas vezes
a palavra
ou o pão
nesta ginástica
silenciosa
da vida
onde o sangue
pulsa pletórico
ou se esvai
e nos deixa
exauridos.
Lisboa, 27 de Maio de 2014
Carlos Vieira

terça-feira, 26 de maio de 2015

A ausência da tua palavra



Sofia de Mello Breyner Andresen

Oiço apenas o ressoar do teu silêncio que avança para mim e a minha vida apenas toca a franja límpida da tua ausência.


A ausência da tua palavra


De volta
para as palavras
como quem regressa
à longínqua casa da infância
onde adquiriam
o peso dos pássaros.

Palavras
que descem à terra
no voo rasante
dos olhares
das carícias
e dos compromissos.

Garatujar
no plano inclinado
em busca do gesto subtil
da escrita inicial
epidérmica
as palavras.

Oiço-as
para além
do roçagar do aparo
a navegar
no tremeluzir
de um corpo
intenso
de um amor primeiro.

Palavras
que nos escapam
dos lábios
no momento crucial
em que perderam
o coração.

Palavras
como espinhos
escondidos
na sombra fresca
do perfume das rosas
numa ânsia de sangue
e no êxtase
dos secretos recantos
do teu corpo.

Palavras
pássaros atónitos de luz
na nascente
da ilusão de um oásis
que sacia toda a sede
e  lava o leito
já seco das lágrimas
e do sémen.

Palavras
para reinventar o silêncio
e ceder às tentações
toldadas
pela erosão do tempo
e impaciência.

Palavras
que no artifício da carta
e do sentimento
se foram apagando.
Os resíduos da tinta
permanecem
conjugam ainda o verbo
de um amor
que dizem
foi único.

Recolho
o perfume
e a áurea do suor
as impressões digitais
onde te reconheço
a olho nu.
Boquiaberto
fico sem palavras
para reconstruir
a intermitência
da tua ausência.

Lisboa, 26 de Maio de 2015

Carlos Vieira