sábado, 28 de fevereiro de 2015

Movimento de translação



Apenas
uma única palavra
em equinócio
por vezes rasa
outras vertical
devorada
por língua de fogo
boreal
enquanto se reacende
o murmúrio
do inédito desejo
em labareda
numa sede urgente
que desperta
subterrânea
num lençol
de água
o sonho
onde mergulha
a raiz de precária
que será uma papoila
dormideira
de coragem inútil
desfraldada
no início
do degelo da memória
para onde corre
a vertigem do sangue
dos inocentes
derramado
na imensa
superfície de neve
aí irrompem
tristes líquenes
no seu adejar
tímido
desajeitado
e saem a medo
as ideias
relutantes
e elementares
da quase eterna
hibernação
num frenesim
e tépida proximidade
de animais
solares.

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2015
Carlos Vieira



Melodia Interrompida



Há horas
em que cresce
un frio
por dentro de nós
um íntimo arrepio
e nos sentimos nus
e sós
à mercê
mínimos
menores
te sentes um pouco
mais do que quase nada
traído
por um fio
não te podes
esconder
sem abrigo
incrédulo
perante
a ruína
do que acreditaste
e sem forças
Mais velho
para carregar
de novo
o fardo
repentinamente
tão pesado
desesperado
de amar
o amor
tão ausente
tão entrecortado
e sorris
perante
a normalidade
dos beijos mornos
tão habituado
e condescendente
e o cansaço
de esperar
e a espera
de exasperar
por outra estação
pelo fim
de mais um Inverno
que interrompa
os gestos timídos ou contidos
e as meias palavras
destes dias
e das noites
que nunca acabam.

Lisboa, 25 de Fevereiro de 2015
Carlos Vieira




Escultura Daniel Arsham

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Apesar do AVC ou por causa dele



I

Olho por ti
e lembro-me 
de ter visto contigo
Tudo O Vento Levou
no velho cinema das Furnas
com banda sonora
a ecoar
no telhado de zinco.

II

Não te esqueço
no Mercado do Rego
no deve e haver
da madrugada
contabilizando
a explosão de aromas
e sabores
acompanhados
de um galão escuro
e meia torrada
em pão caseiro.

III

Recordas-te
de levar as hortaliças
e a fruta
aos veterenários e tratadores
residentes humanos
do Jardim Zoológico
e no regresso 
ofereceste-me
um gelado Rajá
e saíu-me
um Franjinhas
de plástico
e andámos de gaivota.

IV

Não julgues
que me esqueci
das noites quentes 
de Verão
no Picadeiro da Nazaré
a resistir
ao mármore frio
do Estado Novo
não dormias
e não era por causa
do café
a tua preocupação
foram sempre
os outros.

V

Sei da tua solidão
pela vida fora
da grande desilusão 
de um primeiro 
e único amor
como podes lembrar-te
se foi há meio século atrás
ficaste refém
daquilo
em que acreditaste
da tua entrega
e nunca concebeste
atravessar 
de novo a dor
de te dares
e de te perderes
outra vez.

VI

Não me tentes
enganar
agora não vais desistir
antes de chegar
à meta
lembras-te de irmos 
ver a última etapa
da Volta a Portugal
na subida
da Calçada do Carriche
tão frágil
volta a fazer 
das fraquezas forças
os teus frágeis ossos 
da osteoporose
com suas bolsas de ar
podem permitir-te 
voar.

VII

Sei 
da tua entrega
a todos 
e a cada um de nós
da enorme presença
de espírito
quando ficaste sozinha
a tomar conta
da terna Penélope 
deficiente mental
tua irmã
que toda a vida
foi tecendo e cozendo
a sua inacessível
solidão
não sei com que número
de agulha
a linha era Âncora
se bem me recordo.

Escusas
de me olhar
como quem não percebe
já nos conhecemos
não julgues
que te deixamos
desistir.

Lisboa, 21 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

No crepúsculo...

No crepúsculo
de ferrugem
do fim de tarde
acendem-se efémeros
reflexos de quartzo
a meia encosta
da Serra dos Candeiros
a descoberto
com as últimas chuvas
os moinhos eólicos
são pássaros
pesados de mais
para levantar voo
eu faço de D. Quixote
desenganado.

Porto de Mós, 19 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

Poema para um primeiro beijo

Ali
para os lados
da Mira de Aire
nuvens de chumbo
entre mim e ti
a céu aberto
o amarelo torrado
do calcário
antecede a noite
o rio Lena
serpenteia
numa demência
ou ciúme
ou juventude
tardia
eu como tangerinas
sentado no mocho
do quintal
o castelo 
de Porto de Mós
derrama
suas duas torres
de verdete
na paisagem
e tu regressas
aos contos 
cor-de-rosa
no giz 
na ardósia
acendo sonhos 
hieróglifos
para ti
a preto e branco
ecoa na praça
solar
o teu primeiro beijo
apedrejado
no pelourinho
desse tempos
meu padrão 
de descobrimento
e nos arredores
a arengar
as rolas
nos pinhais
e as velhas 
nos portais
testemunhas
pouco credíveis
intriguista
da história.

Porto de Mós, 20 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

Embuste



Podia discutir-se 
se foi a fome
que o cegou
se foi o olho gordo
facto
o tordo arisco
caiu na armadilha
de visco 
lição
nem tudo 
o que luz 
é a azeitona
de azeviche
servida 
na bandeja
de prata 
da oliveira.

Porto de Mós, 19 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

Poema com magnólias

Poema com magnólias 

Oiço-a respirar
com dificuldade,
agitada
das coisas 
por dizer, 
entaladas
na garganta
-tu que sempre foste 
tão clara –
por dentro de mim
é directa a proporção,
a surpresa
com que aumenta
o meu batimento
cardíaco
e um estremecimento
perturbador,
uma calada
preocupação.

Olho pela janela
lá fora
e vou pela tua mão,
pela vereda
de um outro tempo,
em que nos agachámos 
a observar
com a contida
respiração 
uma raposa
de ficção,
atenta ao volume
do restolhar
do coelho, 
nas folhas secas
do bosque ali perto,
pelo princípio
do outono.

De qualquer forma,
pressente-se
o crepitar 
e a ténue chama
de vidas,
presas por um fio,
por um momento
olho para ti,
nos teus olhos
pequeninos
focados no firmamento
e eis que desce 
uma lágrima,
a última gota 
que me afoga.

Tudo isto 
devia ser apenas
uma gripe, 
fruta da época
e não é essa história
da extensa lesão
no parietal direito,
voltaste 
a jogar às escondidas
sem ter idade 
para isso,
neste tempo
tão propício 
ao desencontro.

Não minha amiga,
assim não vale
ires esconderes-te 
no hospital
e só te poder encontrar 
à hora da visita. 

Lembras-te 
que a brisa denunciou
a raposa
e que ainda 
vem aí a Primavera
que temos 
muitos passeios
por dar
pela alameda
das magnólias
que neste poema 
plantei para ti.

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira