domingo, 2 de fevereiro de 2014

Num Monumento à Aspirina


Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

Descia a tempestade...

Descia a tempestade
como quem vai
comprar cigarros ao outro

lado da vida. Lá ia
de mãos nos bolsos de alguma
inclinação. Subia

para os comboios na estação
mais fria, lia

sobretudo nobre
azul e poesia.


José Carlos Soares

Jogo limpo

Jogo limpo

o poeta revela sérias dificuldades em jogar 
outro jogo que não o solitário
embora tenha mais dificuldade em fazer batota
consigo mesmo

o jogo está viciado
só lhe saem "duques ou senas tristes"
nem um trunfo
sem cartas na manga, nem no colarinho

o seu à vontade 
é mais evidente nos jogos de tasca
a lerpa, a sueca, o sete e meio
de um trago a luz embaciada
no vidro pesado de um copo de três
e outra vez a manilha seca

um sorriso aflora-lhe
nos lábios
se falar do jogo do burro 
e da bisca lambida
da infância

claro que sente a ternura
de uma partida de bridge
a volúpia tranquila
da canasta
de outros jogos de salão
das pequenas obscenidades
por debaixo da mesa

o poeta não pode deixar de ir a jogo

Lisboa, 2 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira



sábado, 1 de fevereiro de 2014

O que é que brilha no escuro?



O que é que brilha no escuro?
e não são os olhos verdes 
de um gato reincidente,
nem um farol a romper aflito 
no denso nevoeiro,
é impossível que seja a vela bruxuleante
no longínquo casebre 
numa noite de breu
e de febre,
obviamente que não é a lua 
porque essa brilha
desavergonhadamente,
nem é a secular luz ao fundo do túnel
nem a vertigem da luz do comboio 
em sentido em sentido contrário,
não pode ser a lanterna com a sua iluminação
mínima e radiante de Mona Lisa,
também não é tempo de pirilampos nos baldios,
isso são tudo
lugares comuns e literatura,
a luz que brilha no escuro
é o reflexo surreal
de um gajo às "turras"
com a solidão
de um cigarro aceso.

Lisboa, 1 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

The Darker Sooner




Then came the darker sooner,
came the later lower.
We were no longer a sweeter-here
happily-ever-after. We were after ever.
We were farther and further.
More was the word we used for harder.
Lost was our standard-bearer.
Our gods were fallen faster,
and fallen larger.
The day was duller, duller
was disaster. Our charge was error.
Instead of leader we had louder,
instead of lover, never. And over this river
broke the winter’s black weather.


Catherine Wing

Capricho


Poema de Marin Sorescu
Tradução de Luciano Maia




A cada anoitecer
peço aos vizinhos
todas as cadeiras disponíveis
e leio-lhes versos.

As cadeiras são muito receptivas
à poesia,
se souberem como dispô-las.

Por isso,
eu me emociono
e durante algumas horas
conto-lhes
como morreu toda a minha alma
nesse dia.

Os nossos encontros
são de costume sóbrios,
sem entusiasmos
inúteis.

Em todo o caso
isso significa que cada um
cumpriu o seu dever
e podemos seguir
adiante.

O inferno do homem

Não há outro inferno para o homem além da estupidez ou da maldade dos seus semelhantes.