sábado, 25 de janeiro de 2014

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Tem cara de perder. Esta semana
voltou a não levar preservativos
e nunca mais comprou comida para o cão.
Se calhar divorciaram-se, e ficou ela
com o bicho. Só não percebo como é que
ele sozinho consegue beber tanto leite.
Perdeu também um pouco da arrogância
com que habitualmente me passava
o visa. Mas devia ser bonito, em novo.


Manuel de Freitas
Isilda ou a Nudez dos Códigos de Barras
Black Sun Editores
2001

CLARIDADE




O barulho de existir:
um cão
dentro de mim.

Atravesso
como a um pátio
o barulho de existir.


Carlos Nejar, Árvore do Mundo

Os cães gerais...



"os cães gerais ladram às luas que lavram pelos desertos fora,
mas a gota de água treme e brilha,
não uses as unhas senão nas linhas mais puras,
e a grande Constelação do Cão galga através da noite do mundo cheia de ar e de areia
e de fogo,
e não interrompe ministério nenhum nem nenhum elemento,
e tu guarda para a escrita a estrita gota de água imarcescível
contra a turva sede da matilha,
com tua linha limpa cruzas cactos, escorpiões, o ar cego:
e queres apenas
aquela gota viva entre as unhas,
enquanto em torno sob as luas os cães cheiram os cus uns aos outros
à procura do ouro"

Herberto Helder, Servidões, Assírio & Alvim, Maio de 2013, p. 68.

Novela curta

NOVELA CURTA



O meu amigo Moreira mandou uma vez construir, num quintal velho que tinha, uma casa elegante para um cão. Encarregou d'isso um mestre de obras, que, atraído pela estranheza do assunto e pela suposta loucura do criador do proposito, construiu uma espécie de chalet digno de ser pago, sem sobras, por alto preço.
Quando a casa para o cão estava pronta, o Moreira compareceu e aprovou. Elogiou o mestre de obras, e foi-se embora, meditando.
Dias depois, quando o mestre de obras apareceu com a conta, o Moreira pediu-lhe que o acompanhasse ao quintal velho. Chegados ali, disse-lhe com enternecimento, apontando para a casa do cão.
- Olhe, mestre, meta a conta ali dentro. Ela é que é o cão.

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Os meus fantasmas

Uma caneta
que não escreve
no momento
que o poema
aperta

Cães a ladrar
para espantar a noite
que aperta contra
a caneta

que não escreve

na noite
onde cães ladram
para espantar
a caneta
que não escreve
o poema

que aperta
que me aperta

E a caneta
que não escreve
E os cães a ladrar
para espantar
a noite
para espantar
a caneta que mesmo

assim não escreve
o poema
que aperta


Manuel A. Domingos, Teorias

Seria primeiro...


Seria primeiro podridão fétida, depois uma pasta pegajosa, no fim uma poeira que se não distinguiria do outro pó. Aquilo por que éramos, sentíamos, conhecíamos, existíamos, nos podíamos tornar um corpo triunfante, acabava connosco, não nos sobrevivia: apenas durava mais o cabide daquilo, sem que sequer pudesse aguentar-se em pé. Revi o esqueleto que havia no liceu, pendurado numa haste de ferro, como um enforcado, e com os ossos presos uns aos outros por araminhos. E a vida era isso: a duração daquele conjunto de carne, pela qual a nossa consciência, as nossas faculdades, o nosso «eu» existia.

Sinais de Fogo, Jorge de Sena 

Ver-te nas minhas mãos


Ele pousou
a mão
no teu ombro nu.
Ela sorriu
interiormente.
Ele compôs
com os dedos
o teu cabelo
desgrenhado.
Ela cruzou
sua mão
sobre o peito
e pousou
sobre a dele
que não via,
nas suas costas.
Ele segredou-lhe
algo ao ouvido
e não viu,
a progressão
da alegria
no rosto dela,
não podia ver.
Ela riu-se
e virou-se
de súbito
e tapou-lhe
a boca.
Ele beijou-lhe
os olhos
ternamente.
Ela abraçou-o
e ele levantou-a
do chão,
numa versão
de amar,
muito táctil
e substantiva.
Eles amavam-se,
o que era
perceptível,
para qualquer um
e, talvez por isso,
estavam
mais cegos.
Apenas
o seu cão guia
os observava
e gania
não se sabe,
se de impaciência
ou de contentamento.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2014

Carlos Vieira