sábado, 28 de dezembro de 2013

blues da morte de amor


já ninguém morre de amor, eu uma vez 
andei lá perto, estive mesmo quase, 
era um tempo de humores bem sacudidos, 
depressões sincopadas, bem graves, minha querida, 
mas afinal não morri, como se vê, ah, não, 
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz, 
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes, 
ah, sim, pela noite dentro, minha querida. 

a gente sopra e não atina, há um aperto 
no coração, uma tensão no clarinete e 
tão desgraçado o que senti, mas realmente, 
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não, 
eu nunca tive queda para kamikaze, 
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida, 
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber, 
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim. 

há ritmos na rua que vêm de casa em casa, 
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali. 
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha 
no lusco-fusco da canção parar à minha casa, 
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente, 
minha querida, toda a gente do bairro, 
e então murmurarei, a ver fugir a escala 
do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim. 

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

TESEU SEM MINOTAURO



para o Manuel de Freitas

Como em qualquer labirinto, estas esquinas
apenas garantem que não há certezas
na direcção do futuro. Lisboa
nunca foi como em tempos a sonhei.

E contudo venho aqui em peregrinação
habitual, sem tão-pouco saber que lhe pedir.
Indecisões da fé e da sua alavanca diminuta,
à qual desmesuradamente chamamos coração.


Vitor Nogueira

Restaurante

Leva-me outra vez para a mesma mesa
onde fico de costas para a janela
onde o tempo me esquece
onde nada me toca
o teu gesto protege
o teu corpo separa
a água que me dás
interrompe a memória

Só à porta da rua
o tempo reaparece.

em A Oriente, 1ª edição, Lisboa: Editorial Presença, colecção Forma – 38, 1998, p.12

Nada nem nenhum...

Nada nem nenhum
guarda garante o sono,
senão o medo que vela
à cabeceira.

Noites preenchidas de demónios

e quimeras.

A candeia quase extinta
à míngua de azeite
é que fabrica as sombras.

Depois, pela manhã,
lambo as feridas,
penteio-me como se
tivesse dormido, como se

não fosse nada.










Photobucket


A pele a cores dos mineiros




Toca a sirene
é hora de sair da mina 
saem os brancos, os pretos, os amarelos 
todos negros
e no fim da vida 
pode-se dizer que saem azuis
com crateras de silíca imaculada
nos pulmões.

Lisboa, 27 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Os Poetas Trabalham à Noite



Os poetas trabalham à noite
quando o tempo não urge sobre eles,
quando cala o rumor da multidão
e termina o linchamento das horas.

Os poetas trabalham no escuro
Como falcões noturnos ou rouxinóis
de dulcíssimo canto
e temem por ofender Deus.

Mas os poetas, em seus silêncios
fazem bem mais rumor
Que uma dourada cúpula de estrelas.


Alda Merini

Poema em reconstrução




O vento sopra desalmadamente
folhas de papel, plásticos, ramos voam pelo ar,
na rua larga do poema não fica pedra sobre pedra
vai tudo à frente, as  palavras viradas do avesso,
esventradas, no estaleiro em frente, um operário
assobia uma canção familiar.

Lisboa, 27 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira