sábado, 16 de fevereiro de 2013

Poema de mínima precipitação


 

 

Podes ouvir-me

estou na terra

de ninguém

no meio do nada

o eco do teu nome

é no silêncio

uma gota de água

trazida pela brisa

que foi rumor

dos teus lábios

agora sim

posso partir

em segredo

ao escutar de volta

os teus passos

calam-se os olhos

incapazes

de suster o fulgor

da tua imagem

definitiva.

 

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira
 

 
                                                Imagem de “Stalker”, filme de Andrei Tarkovski

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Perdido vou pela tua mão


 

A tua mão

é o pássaro

que pousou suave

e bebe nos interstícios da pele

a cumplicidade

de todos os dias reclamada

depois desfaz-se na solicitude

da manhã que perpassa pelo estore

e acende na seda da cortina

um etéreo teatro de sombras

um bailado de irreconciliáveis

contradições.

 

A tua mão

que me desarmou

e ergue a taça da tua voz

rosa de um jardim secreto

que descobriu para mim o timbre

cuja exótica tonalidade

fere no dia o seu princípio

como se o tempo te despisse

de formalidades

fazendo-me acreditar

na tua imortalidade.

 

A tua mão

que permaneça

mais um pouco

nesta renovada reinvenção

da nossa contiguidade

prolonga a tua enorme presença

o café pode esperar

ergue os teus seios temerosos

e segreda-me agora

todos os sabores.

 

A tua mão

que releva o erro

acalma os acidentes das paisagens

onde nunca é tarde

para regressar pelos teus dedos

ao desfiladeiro

aos labirintos dos nossos corpos

dissidentes do vento

mergulhando em todos os abismos

sussurrando

contra o ensurdecedor silêncio

da carne.

 

A tua mão

que erra

pelo caos dos lençóis

de retorno ao princípio do mundo

ao primeiro dia em que te conheci

de onde rumámos nus

até à entrega absoluta

ao intrépido abandono

numa inequívoca falta de razão

sequiosos apenas do conhecimento

que nos consumia

que torrencial brotava

sendo fonte e fogo ancestral.

 

 

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira

                                                                   Lovers hand by Katie091

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A eterna precariedade do amor


 

A noite mais pura nos teus ombros

é uma nau surpreendente

que transporta o orvalho das pérolas

e sobre si o gume afável do horizonte

a urdir palavras de sal e espuma

estou neste vagar de pescador

suspenso sobre a ponte

libertando da linha a nuvem

e a claustrofobia do peixe

que voa agora num céu de chumbo

olho-te por debaixo da máscara

que os dias vão segregando

mergulhado nas  névoas

inefáveis do tempo

estou de vigia

neste silêncio aflito

à solta na enseada um nó cego

aceso de fúria

os uivos da tempestade

são também revelações do teu corpo nu

ardem estrelas fugazes nas articulações

e abrando o músculo das vinganças

tornaram-se efémeras as ilusões de conquista

vou devorando correntes e âncoras

da madrugada

no esquecimento

prossegue o larvar das cicatrizes de luz

enquanto pirogas de espanto

navegam desgovernadas

escapando por um triz

aos corais da razão submersa

soçobramos no mistério da praia mar

à liberdade lapidar de vencer a morte

e à ansiosa expressão  de um olhar

entre a vereda vertical

e a emboscada

escondes-te num inquieto magnetismo

no entanto o mundo

arruma-se pacientemente

debaixo de um carvalho secular

os insectos vão soletrando o húmus

o que nos trai

é o triste desatar do esperanto das lágrimas

aguardando que compareças

na poesia

em que vou decantando a tua ausência

paciente

viro-me subitamente

e não és apenas a folha caduca

que cai

tu és a minha única certeza

pendular.

 

 

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira


 
                                               Chagall
 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Poema elementar




nada melhor
para fazer  “boa poesia”
do que estar desempregado
e de barriga vazia

viver toldado
pela palavra necessária

de manhã acordar com o esboço
do pequeno almoço

nada melhor
que acariciar os flancos
dos versos brancos

de alma feita num farrapo
num último esforço cénico
içar
a bandeira da dignidade
e gritar
limpem-se a este guardanapo
que não tenho papel higiénico.

Lisboa, 11 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira

                               Foto de autor desconhecido

"Hasselblad Masters Book" Documentary

Sally Mann - Deep South

Caracol põe os “corninhos” ao sol

 
Caracol põe os “corninhos” ao sol
constróis de clorofila
e da nervura da flor a casa que carregas
atravessas devagar
o perfume de orégãos
o clamor das rãs e o rumor da água
adormeces à margem
da catarata e do pântano do tempo
percorres nesse silêncio de prata
a distância que sabes subtil
que separa a terra da lua
que te esconde
resistes no interstício do tronco
na invencível solidão da fraga
no vertical exercício
teces á tua volta o poema
que vai de  encontro ao mundo
que te esmaga
caracol põe os “corninhos” ao sol

Lisboa, 11 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira

                                                  "Etoiles d'Escargot" - Juan Miró