quarta-feira, 13 de junho de 2012

natureza morta da insídia



são ínfimos os fragmentos

talvez sejam porcelana antiga

que não resiste à minúcia de um olhar

descortinando o ardil



o esvoaçar da cortina

permitiu o fulgir da louça frágil

e perceber a sede acesa do lugar

na perplexidade inocente da carne



oiço a brisa de um alaúde

e a penumbra do perfume já distante

de uma pérfida Cleópatra

o papiro respira a amável escrita



no perímetro do vinho derramado

adivinhavam-se partículas do veneno

nas arestas de suor e nas esquinas

espreita a náusea e o véu do poder



após os cálculos desfeitos em pó

que tinha pairado nas horas mortas

intuem-se as vozes ciciadas

em ciladas mínimas mas bastantes



rastejam nos relógios vigiados

veludos não anunciados e perversos

na miríade de vestígios de carícias

sofre a nudez breves golpes de luz



Lisboa, 13 de Junho de 2012

Carlos Vieira



“A negação de S. Pedro” de Caravaggio

O Amor

Aragon:

" O amor é a única perda da liberdade que nos dá força": esta frase que ouvi à pessoa a quem mais quero neste mundo resume tudo quanto eu sei sobre o amor.
Quando o amor exige o sacrifício de tudo quanto faz a dignidade da vIda, nego que isso seja o amor.
Não posso passar sem a presença da pessoa amada. É possível que isso seja uma enfermidade."

DO AMOR ADMIRÁVEL E DA VIDA SÓRDIDA

lady and bird- the ballade of lady and bird


terça-feira, 12 de junho de 2012

Amores de Verão VII


Foi nesse tempo que amou, sem reticências, a sua primeira professora. Foi ela, que só por estar ali, o ensinou sem saber, depois das letras brancas de giz e português escorreito, toda a ternura do fim do Verão.

Ele lembrava-se das suas mãos sujas de óleo, na corrente de bicicleta dela, dos segredos que lhe contou, de todas as ondas que amansou por ela, da sua elegância, do seu precário equilíbrio.

Podia até falar de todas as vezes que vigiando-a, a salvou do esquecimento e do seu sabor a sal, um paradoxo de ingenuidade com o cabelo em desalinho.

Tantas foram as vezes que correu atrás do chapéu e depois lho devolvia, como se fosse uma pomba, aguardando o seu inesquecível sorriso agradecido.

Quantas foram as vezes que ele sonhou o seu saber tranquilo, nas suas pernas cruzadas e o gelado de baunilha, a escorrer-lhe por um canto dos lábios.

Recordo-a no final da praia, de fato de banho claro, a cor foi-se desvanecendo com os anos, ela e o rabo-de-cavalo dos seus cabelos louros, iam de encontro à falésia, havia o inevitável reflexo dourado da areia, que para o efeito, podia não ter tido qualquer influência ou teria sido esse ângulo de luz que a iluminou até hoje?

No fim da tarde uma maresia intensa, dentro de mim, um oceano de angústia e uma vontade indefinível de a abraçar, como se a acabasse de perder.

Já possuído das competências que ela o dotara, conseguiu ler e reler dias depois, a notícia cinzenta e triste, no jornal do país triste, nesse dia ainda mais cinzento, “jovem professora não sobreviveu em colisão frontal”.

No seu peito deflagrou um grito, as letras brancas do quadro negro e as letras negras daquele jornal, agora bailavam atónitas nas suas mãos, perante os seus olhos foram-se desfazendo, líquidas, naquele bocado de papel amargo.

Seria sempre mais adequado e razoável, um outro distanciamento, a verdade é que ia começar um novo lectivo, o estudo seria, certamente, muito mais produtivo.



Lisboa, 9 de Junho de 2012

Carlos Vieira


                                                                         “Jacket” por Jodoin

Amorosa antecipação


Nem a intimidade de tua fronte clara como uma festa
nem o costume do teu corpo, ainda que misterioso e tácito e de menina,
nem a sucessão de tua vida em palavras ou silêncios
serão dádiva tão misteriosa
como contemplar teu sono envolvido
na vigília de meus braços.
Virgem milagrosamente outra vez, pela virtude absolutória do sono
quieta e resplandecente como um destino que a memória escolhe,
me darás essa margem de tua vida que tu mesma não possuis.
Lançado à quietude
divisarei essa praia última de teu ser
e ver-te-ei, quiçá pela primeira vez,
tal como Deus há de ver-te,
desbaratada a ficção do Tempo,
sem o amor, sem mim.

Jorge Luis Borges

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Amores de Verão VIII

 

Quase podia ouvir

os teus pequenos passos

estudados para o encontro

furtivos

por detrás das grandes rochas

do pensamento

antes da paixão

essa lâmina forjada na lua

perpendicular

o teu olhar libidinoso

a corroer-me por dentro

de um doce tormento

lembro-me depois de nós

de estarmos ali íntegros

nus e sós

sem mácula

os teus gritos

faziam parte da curva de água

no ruir das ondas

rastilho do esplendor

de todo o pecado

depois não ouvi mais nada

e fiquei cego

sei que não houve misericórdia

que algures aconteceu a nossa morte

e lembro-me de ter ressuscitado

ao teu lado

na coada madrugada

do céu riscado de uma barraca

no meu sonho não sei se dormias

profundamente

ou se tinhas partido

nunca mais deixei de te amar

nunca te poderia dizer

nunca te iria dizer

no medo de te perder

ao te acordar





Lisboa, 9 de Junho de 2012

Carlos Vieira


                                                         “Summerlove” Nathalie du Prel

Amores de Verão VI




Tudo aquilo

foi uma tragédia

morreu no entanto

como sempre desejou

nos braços da mulher amada

é certo que se esvaia

em sangue

foi seu último

e o mais belo Verão

ela  tinha os cabelos molhados

e não chorou uma única lágrima

já não o amava

ele só depois de morto percebeu

depois que ela já lhe tinha espetado

o punhal

cirurgicamente

no coração

com toda a ternura

fulminante

despojando-o de toda a dor

último gesto de amor

letal

era intolerável para ela

que o pudesse enganar

deu uns retoques na pintura

e no cabelo

e respirou

como se saboreasse a liberdade

desde há muitos anos

e entregou-se depois

às autoridades



Lisboa, 9 de Junho de 2012

Carlos Vieira

                                                                Andor Novak “Femme Fatal”