terça-feira, 29 de maio de 2012

Poema para uma cabra





existe uma cabra dentro de nós

que voa, que salta,

que cabriola

e depois regressa ao recolhimento da  erva

à serenidade de monge budista

a olhar o precipício e o cume das montanhas

a cabra que cai em si



a cabra põe-se em bicos de pés

para ver ao longe

para que seja vista

cabra do desassossego

irrompe pelos barrancos

suspensa nas faldas da montanha

ágil é o raciocínio da cabra



sobre o manto de neve espreitam o infinito

manchas castanhas

erguem-se as puras hastes da alegria

de nariz no ar

contra o vento

ordenhas o nevoeiro

cuida a cabra da sobrevivência



progridem as cabras pelos penhascos

com ouvido de tísico e duros cascos

cabras góticas e  inventadas e secas

poemas nómadas

ruminando papel de jornal

no espírito do rebanho



crescem nas pastagens mais recônditas

as elegantes cabras

são sonhos embevecidos para punhais

os lobos são vultos que vigiam

nas escarpas

as palavras proscritas

e as cabras perdidas





Lisboa, 29 de Maio de 2012

Carlos Vieira


                                                               “A Cabra” de Picasso


domingo, 27 de maio de 2012

humores líquidos


flúor

e lágrimas de algas

num sonho de omoplatas



substância

na pele dos rochedos

um perfume de viagens e enredos



bálsamo

a insinuar-se nas tuas ancas

uma alma e um sexo de roldanas e alavancas



óleo

num altar de gaivotas

e de braços acesos onde não voltas



fragrância

no meridiano do desejo

toldando o cálculo despes a distância



ânfora

para onde confluiu

a água da chuva que desce teu corpo macio



orvalho

no estertor das palavras

que mordes e na foz das tuas pernas soletras



toda a tua ausência

no mar é esse infinito e líquido olhar

que o areal as ondas e as conchas insistem testemunhar



Lisboa, 27 de Maio de 2012

Carlos Vieira



                                              “Waiting for the light”  de David Jay Spyker




sábado, 26 de maio de 2012

Soneto de um amor platónico, a morte nem por isso


fixo-te no verdete que contorna o prumo do silêncio

e abres os braços pela doce asfixia no fumo do tempo

da lâmina exacta de um olhar que ludibria pelo bailado

sei do teu regresso e desespero num abraço de afogado



escuto os teus passos a emergir nos degraus do lago

escorre fulgente pelos teus cabelos dos peixes a prata

uma estrela amadurece nos teus olhos o fruto do afago

gravas o teu caminho em fogo brando mulher ingrata



na linha do horizonte perscruto o teu gesto curvo de lua

e sob os teus ombros proclama-se a espuma das marés

no estuário dos astros o murmúrio de ondas vendo-te nua



depois existe o degelo das palavras que descem das montanhas

um guerrilheiro sai da gruta e encadeado na luz cai a teus pés

olhas o céu e contorcidas de raiva tuas mãos desvendam amanhãs



Lisboa, 26 de Maio de 2012

Carlos Vieira



                                                   Escultura de “Mulher Sonhando”




"Caminhais em direcção da solidão. Eu, não, eu tenho os livros."

 Marguerite Duras

lisa gerrard - persian love song

Não entres docilmente nessa noite escura - Dylan Thomas






Não entreis docilmente nessa noite serena,
porque a velhice deveria arder e delirar no termo do dia;
 odeia, odeia a luz que começa a morrer. 

No fim, ainda que os sábios aceitem as trevas,
 porque se esgotou o raio nas suas palavras, eles
 não entram docilmente nessa noite serena. 

Homens bons que clamaram, ao passar a última onda, como podia
 o brilho das suas frágeis ações ter dançado na baia verde,
 odiai, odiai a luz que começa a morrer. 

E os loucos que colheram e cantaram o vôo do sol
 e aprenderam, muito tarde, como o feriram no seu caminho,
 não entram docilmente nessa noite serena. 

Junto da morte, homens graves que vedes com um olhar que cega
 quanto os olhos cegos fulgiriam como meteoros e seriam alegres,
 odiai, odiai a luz que começa a morrer. 

E de longe, meu pai, peço-te que nessa altura sombria
 venhas beijar ou amaldiçoar-me com as tuas cruéis lágrimas.
 Não entres docilmente nessa noite serena.
 Odeia, odeia a luz que começa a morrer. 

Tradução: Fernando Guimarães 



Do Not Go Gentle Into That Good Night 

Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light. 

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night. 

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light. 

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night. 

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light. 

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.

Dylan Thomas

Pieter Nooten - Ode