terça-feira, 30 de setembro de 2014

Páginas da escola da vida preparatória III



Fizemos uma reunião, nas traseiras da sala de trabalhos manuais, à socapa, estava decidido, amanhã, depois da última aula às 15h30, iríamos atravessar o túnel, seria o nosso Rabecão.
Este funcionava como um misto de afluente e de esgoto para águas pluviais e outras, passava por debaixo do Mosteiro, não sabíamos o que iríamos encontrar mas na nossa imaginação de miúdos, alguma gabarolice dos mais velhos e excessos de mitologia popular contava-se que o mesmo era habitado, por toda a espécie de coisa, menos por aliados.
Ameaças várias, certamente, era aquilo que podíamos esperar ou talvez tivéssemos convencidos que não eram tão temíveis, os perigos que iríamos confrontar.
No outro dia, devíamos munir-nos de umas velas, lanternas, cordas, roupa velha trazida de casa, à sorrelfa, um canivete suíço, o cantil de água e sandes para o caso, da missão demorar mais tempo que o previsto e os obstáculos da empresa exigissem, suplemento alimentar.
Naquela tarde de fim de Primavera, depois das aulas, pusemo-nos a caminho. Naquela entrada do túnel, camuflada por um matagal, junto à Nacional n.º1, decidimos quem iria na frente, da fila indiana e quem iria na retaguarda, os dois lugares de maior perigo e responsabilidade operacional.
Esticar a corda de sisal, serviria de ligação entre todos e de sinal de aviso, consoante o número de puxões, acendemos as lanternas e embrenhámo-nos no túnel onde o breu ancestral, rapidamente nos abraçou.
Prontos para o que desse e viesse, insignes herdeiros da tradição dos de Aljubarrota, podia acercar-se alma penada de castelhano, ratazana do tamanho de coelho, tarântulas de proporções inimagináveis, alvo das transformações que séculos de escuridão lhe provocaram, pessoa ou animal lendário, para aqueles quatro jovens vagabundos e mosqueteiros, só por cima do seu cadáver poderiam levar a melhor.
Mais difícil de ultrapassar era o cheiro nauseabundo do esgoto, cujo rumor da água corrente ouvíamos, e que se entranhava por todos os nossos sentidos, o túnel, pouco a pouco, tornava-se mais estreito ou aumentava nos nossos espíritos, receios vários. Foram soçobrando as nossas sombras, pois alguma água que caía das paredes e as correntes de ar, foram apagando as lanternas e depois as velas, finalmente, a caixa de fósforos naufragou.
Daí para a frente já progredíamos às apalpadelas, entre quedas, cabeçadas, a respiração mais acelerada e o coração como um cavalo louco, os nossos risos insolentes, entusiasmos e palavras de incentivo foram-se esgotando, enquanto o tempo passava lentamente, os metros se iam cumprindo e nada de luz ao fundo do túnel.
No nosso estudo a “olhómetro”, o canal era coisa para 1,5 a 2 quilómetros, o que desconhecíamos é que naquelas condições, as distâncias e as sensações aumentavam na mesma proporção das ratazanas que nos corriam entre as pernas e as teias de aranha que nos acariciavam o rosto e ficavam presas no cabelo.
Claro que depois começaram a ecoar as vozes daqueles que diziam que era melhor recuar, voltar para trás, que aquilo era um labirinto, que já nos tínhamos enganado no caminho, sendo certo que nenhum rumo conhecíamos, a estratégia era seguir o caminho em frente. Já tínhamos passado por vários túneis que pareciam desembocar neste, que seria o principal, acreditávamos alguns de nós e que se tornou na tese vencedora.
Apesar da corda, a proximidade entre os quatro temerários ou incautos, foi-se tornando menor, na dúvida de estarmos mais mortos que vivos, de algum de nós termos encarnado outras vidas ou da eventualidade, de estarmos mais perto da morte que da glória, sendo certo que já aspirávamos apenas à sobrevivência.
Por fim, já em quase desespero, divisámos uma pequena luz lá ao fundo, cépticos se não seria, um corcunda de candeia, que nos vinha receber e encaminhar para o local, onde iríamos acabar os nossos dias, espiar severamente, o preço do atrevimento com os deuses ou então, seria a luz do dia primaveril que iria coroar de glória a nossa audácia.
Entre o temor, o cansaço e a esperança, lá fomos avançando, foi melhorando a qualidade do ar, diminuindo o cheiro fétido, fomos inchando na nossa opinião, de que estávamos no rumo certo, no caminho da salvação e que podíamos estar em vias de cumprir o desafio e alto desígnio a que nos tínhamos proposto, deixando de rastos mais alguns mitos e fantasmas.
Já víamos ao longe o canavial do Lena, esse bucólico rio de que falava Rodrigues Lobo e que recebia este afluente que tanto o desmerecia.
Aqui estávamos nós, em vias de conseguir um feito histórico que na nossa mente, somente era igualável, aquele que o exército do Condestável conseguira, a menos de dois quilómetro, em linha recta daquele local, obviamente, com diferentes propósitos e recursos.
Já estávamos quase a chegar à boca do túnel, onde o azul do céu nos recebia sobre um vinhedo na encosta fronteira, quando ficámos subitamente gelados, perante o emergir, de duas silhuetas que nos pareceram dois crocodilos, que subitamente se erguessem sobre as patas.
Alguns pormenores sobressaíram na contraluz, os contornos das pistolas, um cinzento de uniforme familiar e aquele chapéu peculiar, de plantão, aguardavam por nós, não era necessário legendas, os dois guardas não estavam ali à espera, por causa dos nosso lindos olhos, não tinham a mesma percepção, nem partilhavam a opinião, sobre o alcance e a dimensão da aventura que tínhamos protagonizado.
Levaram-nos para o posto da GNR, ali próximo, preparávamo-nos para o pior, um valente sermão era a parte menos desagradável, alguns abanões de permeio ainda eram suportáveis, não nos enganámos, entre uma furtiva lágrima e desculpas esfarrapadas entre dentes, fizeram-nos prometer, que jamais voltaríamos a desafiar as forças misteriosas que habitavam os esgotos, que nós ainda desconhecíamos os perigos a que nos sujeitámos, as preocupações que a todos causamos e que nossos pais seriam informados, deste acto de demência, de que tínhamos sido infelizes intérpretes e se mais alguma vez, ousássemos cometer tal loucura ou outra de igual falta de senso, poderíamos conhecer as agruras do calabouço ou seríamos internados no Hospital das Brancas.
Nem ombros, nem glória, uma tarde que desembocou na falta de sensibilidade e de conhecimento, da recusa da arrojo e do risco pelos mais velhos, destes não era nada que não esperássemos, deveríamos agora procurar saber quem tinha sido o “bufo” que “pôs a boca no trombone”, o responsável que ensombrou acto tão corajoso e significativo, que foi esse percurso subterrâneo, às apalpadelas, contra as trevas e a resignação.

Lisboa, 30 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Libélula



Ali estava caída
no cimento
no difícil equilíbrio
do momento.

De renda
de asa ferida
libélula exausta
exibe
seu verde vibrante
e seu anel
de eléctrico azul.

Reergue-se
após ter insistindo
incessante
contra o espelho
no lado errado
da janela aberta
no lado negro
da lua.

Em esforço
desamparada
jaz na rua
e das suas frágeis
antenas
asas e hastes
faz a força
e volta inglória
à mesma luta.

Lisboa, 29 de Setembro de 2014
Carlos Vieira


domingo, 28 de setembro de 2014

Páginas da escola da vida preparatória II




Tirando a bissectriz aos voos côncavos das andorinhas, estávamos no ano da graça de 1971, dias de Abril, segunda-feira.

O guarda do mosteiro, familiar de um colega cujo nome esqueci, pegava naquele molho de chaves e parecia ir conduzir-nos às catacumbas, aos calabouços e mostrar-nos inimagináveis monstros mas não, recordo-me como se fosse hoje, dirigimo-nos a uma torre que se erguia, a partir dos jardins dos claustros.

Éramos um bando de garotos no intervalo das aulas com esse conhecimento privilegiado, subimos uma íngreme, apertada e comprida escada em caracol, resfolegávamos de excitação, pois qualquer sítio a cinco palmos de chão naquela idade, era mais um nível, antes do paraíso.

Eis senão quando, a enorme chave nas mãos espadaúdas do guarda abriu sobre um chiar de gonzos e foi um deslumbramento de calcário, de terraços, um jardim de pináculos e de torres, de bocarras das carrancas e uma imensa filigrana de pedra, apenas para deleite de deuses e parentes que como nós, ali podíamos agora aceder.

Naquela tarde, ali nos deliciámos a jogar às escondidas, enquanto os comuns mortais, se desfaziam em argumentos e trejeitos no bulício do mercado.

Lisboa, 28 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Dia após dia...

Dia após dia
faço mais um risco no poema
confio em afinar a pontaria
do encontro doloroso
com a palavra certa
e afirmar
a partir destes cinquenta e cinco
que estarei a mais de meio da pena.

Lisboa, 28 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

sábado, 27 de setembro de 2014

Páginas da escola de vida preparatória I


Todas as semanas, descia da escola do Ciclo, tinha de ir visitar o soldado desconhecido, esgueirava-me até ao Mosteiro e admirava, demoradamente, a abóbada de Afonso Domingos, pelo contraforte do olhar, via os dois soldados, em sentido, prestes a rebentar. Estremeci daquela visão, capaz de me fulminar, deixei a obra do Mestre que também revisitava e pus-me ao fresco.

Batalha, 14 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

O poeta...

O poeta
é um agente provocador
que na sua poética missão
vive fingindo a dor
o síndrome de Estocolmo.

Lisboa, 27 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

Equilíbrio precário



A destreza da atleta
sobre a trave olímpica
o seu movimento peculiar
depois ampara
o céu com o seu olhar
de estrela inamovível
e perturbada.

Pode sempre acontecer
um imperceptível
desequilíbrio
e que este a desvie
para bondade
que lhe pede o seu gesto
para longe
da nota artística.

Leio no seu rosto
um poema que aspira
a madrugada
uma ave que bate as asas
para iniciar o voo
a distância e a altura
inverosímil.

Um incêndio
consome-lhe o coração
e aquela destreza
de movimentos
tem uma única explicação
não encontra a calma
para as palavras
que dêem a expressão
e a ponte acrobática
ao dilema
que lhe dilacera a alma.

Lisboa, 27 de Setembro de 2014
Caros Vieira

Nadia Comaneci 1976