Desnível
Por cima da ponte da ribeira de Loures, passei agora por um cão e um sem-abrigo, esquálidos os dois.
O humano de cabelo escorrido, de rosto mirrado e uma camisa de burel de ex-condenado, lançava-lhe insultos e um olhar furibundo.
O animal era dourado e trazia um baraço ao pescoço e seguia o homem a uma distância de segurança, seguia-o em trote curto.
O cachorro reconhecendo-lhe a comunhão da desdita, um destino comum, lançava-lhe um olhar que era uma outra ponte, por cima da ribeira de Loures
Lisboa, 9 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
sexta-feira, 9 de novembro de 2012
Desço pela névoa...
Desço pela névoa
o passado cabisbaixo
a vereda e o lameiro
pelo olhar lúbrico
dos bois
vou ao bebedouro
e sorvo com eles
a água e a lua
alcanço a madrugada
e pego pelo cornos
a puta da vida
Lisboa, 9 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
quinta-feira, 8 de novembro de 2012
Foi pelo sopé...
Foi pelo sopé
firme da estrofe
na tarde onde se diluía o sol rasteiro
que articulava
rimas e ervas daninhas
levou o gado das palavras tresmalhadas
para o redil
e os lobos rondaram
toda a noite à volta
do poema
que lhe enganava a fome
Lisboa, 8 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
Lagunas
as lagunas
pensamentos
escritos por extenso
afogados no tédio do Verão
na temerária utopia dos peixes
fora de água
são setas de sílex que sobem à tona
reféns de uma verdade profunda
e de razões superficiais
Lisboa, 7 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
pensamentos
escritos por extenso
afogados no tédio do Verão
na temerária utopia dos peixes
fora de água
são setas de sílex que sobem à tona
reféns de uma verdade profunda
e de razões superficiais
Lisboa, 7 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
quarta-feira, 7 de novembro de 2012
Ilumi(ter)nura
Contorce-se
exuberante o teu corpo
lânguido
insurgindo-se
contra as arestas
contra o ofício
das horas contratadas
na veemência do seu olhar
urde a artimanha
de veludo
pela fresta aberta
escapa-se a caligrafia
da alma
insubordinada
até ao istmo da melancolia
no leito frugal
espraia-se eloquente
sinuoso
o damasco do seu torso
em êxtase
de espírito possuído
sonhada
ou venerável iluminura
que convoco
só para este momento audaz
e íntimo de ternura
debruçado sobre o abismo
do teu corpo
Lisboa, 7 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
segunda-feira, 5 de novembro de 2012
Os cotovelos...
Os cotovelos
em v suportavam-lhe
o rosto
os olhos embargados
de azul
e a escotilha embaciada
do plâncton
anunciavam a tempestade
da vida
desce a bruma
pelos seus cabelos
em desalinho
no teu olhar aceso
o ricochete
da carícia dos meus dedos
assustada refugiavas-te
num silêncio
ao fundo do túnel
trazes de volta
à paisagem
o guizo da alegria
de um pensamento solto
único
tu és feita
da fibra e do arco
de antes quebrar
que torcer
ouço siderado de espanto
a grande orquestra dos materiais
o siroco que assobiava
e tu nua
no princípio da noite
e tu nua
no zinco das varandas
e tu nua
nas madeiras de mogno que gemiam
quebrando o verniz
tremes de emoção e de frio
nas esporas
de um bárbaro desejo
em apoteose
o rubi dos teus lábios
demoravas o cerco
das tuas ancas de orquídea
o teu corpo alucinante
desmaiado
estandarte azul
sobre o dorso de um cavalo
a galope.
Lisboa, 4 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
“ Rapariga em cavalo” por YOCO
domingo, 4 de novembro de 2012
Em segredo
"A água anónima sabe
todos os segredos. A mesma lembrança sai de todas as fontes."
Gaston Bachelard; "A Água e
os Sonhos"
Peço-te o maior sigilo
e a maior contenção,
tudo o que aqui escutares se cale
contigo,
deixa que as fragâncias da tarde
te acompanhem
e que o teu corpo resvale pelos
córregos da colina.
Tu serás sempre aquele sorriso
o que se fechou na curva
por detrás da fulva luminosidade,
onde reinava a firmeza e a
fragilidade
de um tronco do carvalho.
Nada vou revelar
ainda que sujeito à tortura do
sono,
permaneceremos inteiros e eternos,
flutuando
por cima do rio dos nossos corpos.
As palavras exigem a mais
absoluta reserva
e a discrição mais ponderada,
tudo isto está envolto no segredo
inexplicável da partilha.
Sobreviver no murmúrio do lençol
de águas
que nunca se renderam
e percorrem ainda,
clareiras resplandecentes de
calcário,
bebemos pois
das harmoniosas ânforas de argila,
aplacando a nossa sofreguidão
de amantes e peregrinos.
Atento à sua natureza
o segredo que comungamos
suscita a necessidade
da maior confidencialidade,
pois que só preservando
a nossa serenidade oculta
podemos sobreviver.
Pois caso veja a luz do dia,
caso seja exposto,
nunca irá resistir à curiosidade
mórbida,
ao decantar da sede de conhecimento
e à urgência da ilusão.
Tal matéria
se de público acesso,
será como um violado corpo nu
e a seguir proscrito,
o qual no fim
até o seu mais sagrado e profundo
mistério pode soçobrar,
deixando-se transpor
pela tragédia do silêncio
desvendado.
Uma flor que desabroche em
atmosfera hostil,
prematura poderá ser a sua morte,
à sua volta
tudo ficará um pouco mais frio
e mais duro, sombrio e desnudado
nunca viverá as efémeras sombras
das borboletas.
E quando,
e se nos olharmos
não iríamos mais
perdurar.
Traída essa secreta cumplicidade
dos que viajam dentro de nós,
restava-nos viver para sempre escondidos,
assumindo a falsa identidade
dos refugiados.
Eu que apenas existo
porque tu respiras
e tu que serás sempre
o meu satélite natural.
Minha secreta luz interior
que fulguras dentro de mim,
de tanto te querer minha
e ao mesmo tempo livre,
podes muito sucumbir
sobre ventilada
ou de falta de ar.
Neste protocolo de vigília
zelo pelo sigilo,
defendendo a perfeita alegria
do teu rosto,
o selvagem percurso dos teus lábios
da insana obscuridade
de todas as ameaças
e o segredo que guardo
é tudo aquilo que junto de ti
eu esqueço.
Lisboa, 4 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
“Le double secret” de René Magritte
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