domingo, 21 de agosto de 2016

Delação


Enquanto dou o despacho
vespertino
absolutamente neutro
“Visto.
Prossiga.”
desce pela chaminé
da lareira
no arrulhar da rola
um incandescente
segredo
a caneta sucumbe
sob a secretária
do aparo
aspiro o aroma
familiar
de tinta permanente
de um azul inquisidor
no murmúrio
menos abundante
da chuva de primavera
sou um espectador cego
perante o silencioso
desabrochar
glorioso da flor
e enlouquece-me
na seiva
o seu secreto rumor.
Loures, 13 de Maio de 2016
Carlos Vieira

O vazio desenhava desde sempre


O vazio desenhava desde sempre a forma do teu rosto
Todas as coisas serviram para nos ensinar
ardente perfeição da tua ausência
Sophia de Mello Breyner Andresen

Napalm


Hoje pensei em napalm
naqueles campos de infância
de búfalos e de gazelas
que há muitos anos se cobriram
de fogo e de cinza
e penso naqueles que hoje
ainda padecem de insónia
e das queimaduras de 1º grau
e todos os que ficaram de vigília
a zelar por um inútil rescaldo
reacenderam-se do nada
no pensamento.
Lisboa, 11 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Diário do discreto cidadão


Fazia tudo
com muita reserva
não gostava de dar nas vistas
e tal era muitas vezes confundido com timidez
no entanto a sua vida sempre se alicerçou
na ousadia e na coragem silenciosa
no gesto subtil de misericórdia e não na astúcia
não no ardil sibilino mas na delicada atenção
nessa discreta generosidade
sopesava que fosse mínima a presença
que a sua sombra não o denunciasse
inventava a ausência em cada passo
era meticuloso e não descuidado
sem pisar ninguém deixava que a sua palavra
se espraiasse luminosa como o ar
que se respira com ela criava abrigos
para os que fugiam das tempestades
acendendo um farol de rara lucidez
sem que se pusesse em bicos de pés
do seu olhar deprendia-se uma alegria contagiante
e uma tábua de salvação
adivinhava-se uma serenidade nunca resignada
com uma pincelada de tristeza solidária
saía com a mesma discrição
de quem entrara e sem deixar rasto
que se notasse ou vazio inquietante
apenas um perfume de inequívoco bom senso
ninguém se apercebera que se quebrara
a completetude do círculo ou que a corrente de ar
pudesse perturbar aquela consertação
das solidões e vacuidade ali reunidas.
Lisboa, 8 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Homem em Azul, Pablo Picasso

Aguarda no carro...

Aguarda no carro
alguém que tarda
a chuva cai inclemente
é como se tivesse
dentro de um piano
onde a música
no exterior
é de água e metal
de vidro e isolamento
e uma flor ao volante
Lisboa, 7 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Desculpe mas preciso de respirar


desculpe
mas esta é uma zona de não fumadores
diz o barman
com o olho azul imperturbável
a boiar no gin
enquanto converso com um amigo meu
que há muito não vejo
e que decorava alegremente
o ambiente com argolas de fumo
e recordava-me vagos sofás
de veludo vermelho
desculpe
mas nesta zona não pode falar
pode-se ciciar
é o mais longe que se pode ir
e os vestidos de noite das senhoras
podem varrer o chão
num roçagar mais ou menos
interrompido
alguém pode deitar o lixo
e a vã humanidade
para debaixo da carpete
para longe de si
desculpe
pode escrevinhar um verso
com rima com ritmo
com o peso que lhe permita o voo
descontando a intensidade da corrente de ar
em que se perceba que queimou as pestanas
para o levantar
a cinquenta pés de altura
para chegar aqui
não se pode sacar de um poema
de versos brancos
e pé quebrado
com um toque modernaço
e desatar a incomodar
os nossos sofisticados clientes
desculpe
mas há espaços próprios para poesia
e momentos
por exemplo nesta zona é proibida
não rima
com um belo Cohiba
não se podemos dar a esses luxos
de demonstrações excessivas
de sensibilidade
a secretas e subversivas alegrias
não damos tréguas ao absurdo e inexplicável
e temos uma política de contingência
e condicionamento
de evitar o contágio dos instintos
desculpe
mas aqui no nosso clube
abominamos
o que é controverso
e não contemporizamos
com discussões serôdias ou de detalhes
estamos imbuidos
de uma curiosidade tranquila
funcionamos em equipa
com incentivos
estamos todos no mesmo navio
a remar todos para o mesmo lado
e quem não é por nós
é contra nós
desculpe
mas não pode entrar de ténis
são normas da casa
o saber estar e a contenção
o beber de uma forma moderada
a apresentação
conta muito para nós
saber comportar-se
não toleramos
o livre arbítrio
desculpe
optar por esse abordagem
tão direta e linear
sabemos
que é um pouco perverso
o entendimento
mas a eficácia
o não perder tempo
a máxima racionalização de recursos
impõe-nos
um certo distanciamento
perante algumas minudências
de personalidade
e de ocupação de território
desculpe
mas aqui não é permitido o beijo
nem outras manifestações de afeto
não é próprio
este é um local de respeito
e de simpatia velada
e subtilezas
temos que lhe pedir
que se contenha
ou que abandone
o estabelecimento
desculpe
mas não pode tirar fotografia
nem flashs
preservamos o ambiente muito peculiar
o controlo científico
para que a exposição
apresente as melhores condições à arte
de que nos orgulhamos mostrar
preservamos
que os visitantes não fiquem afetados
não se intimidem
nem fiquem encadeados
a razão está acima de tudo
desculpe
mas o contexto era muito adverso
pelo que aí pode encontrar
a explicação cabal
não podemos fazer mais nada
não nos estamos a furtar
ás nossas responsabilidades
gostaríamos muito de poder satisfazê-lo
esse não é esse o nosso “core"
a nossa área de negócio
Lisboa, 3 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Inexplicável morte violenta


Ainda se sentou
na escada
que dava acesso
à varanda
do primeiro andar
por ali ficou
a mão esquerda
perdida do corrimão
e da tinta lascada
por tanta intempérie
que queimara
a madeira de pinho
nas pétalas de sangue
no coração a adivinhar
os borbotões no peito
esteve pouco tempo
sozinho
antes que a morte
o acompanhasse
pera além
do horror do vizinho
e contudo
uma eternidade
esculpida no rosto
por instantes
ainda regressou
ao espanto e ao tiro
á queima roupa
a tinir-lhe nos ouvidos
e a pólvora nas narinas
e um silêncio húmido
e o tal caleidoscópio
a toda volta
se o investigador
agora se debatia
com descortinar
do móbil do crime
então que dizer
dele próprio
sua vítima
e os mortos
não falam.
Lisboa, 2 de Maio de 2016
Carlos Vieira