Senta-se no Outono no barco banco de verde tábua cai a folha de ouro que agora flutua no seu olhar de estátua de azul embargado peixe de aquário fora de água refém do abismo em julgamento sumário foi condenado por perjúrio e desmascarado pelo verdete das sereias.
Sento-me na sinuosa muralha da marginal sucede-se um e outro automóvel tardio a resfolegar na noite a soletrar o vazio e o círculo vegetal do alucinado farol o marulhar das ondas a lua é isco no anzol um imperceptível rumor na bóia sob a espuma da solidão no infinito bailado de um robalo triste atraiçoado no diáfono interlúdio do quarto crescente de um dividido coração que o fio de linha ténue pendura num simulacro a que chamam vida ou teatro de fantoches.
Eu não sou eu olho-me de longe aproximo-me de mim olho-me nos olhos para dentro de ti desse precepício onde não sei medir ou pesar quanto de mim és tu eu sou tu em mim te reconheço observo-te sem poder fugir ocupaste-me sem pedir licença ao escrever é a tua mão que me guia minha estrela que na noite escura na tua voz me murmura tu habitas o meu canto no entanto sem ti louco como podia ainda que rouco da garganta irromper sei que querendo que a vida fosse a amorosa aritmética de tu mais eu vivo sempre muito mais os espinhos que a rosa essa falta de métrica por dentro desse dilema de querendo amar-te mais do que sou do que tudo te perdes de mim assim para que possas encontrar-me inteiro não te identifico neste caos do mundo em que me cercas esqueço que és tu a mulher luminosa que me cega e que existindo em mim desconheço que vive ao meu lado sem saber como sobrevive e que me é contudo tão essencial faz parte do ar que respiro amar-te.
esta noite de encanto de instante perplexo da memória cumprida do cântaro ancestral do perfume que inebria do barro o sabor a beijo da alegria rural do solfejo da água fria do esplendor do gesto insaciável sedução na lâmina da impossível trégua
O brilho do asfalto molhado os lençóis de água as nuvens baixas a luz tépida a nudez nunca obscura a vertigem felina o vórtice do desejo as lâminas faiscantes um sorriso que desarma a criança a brincar mãos sobrevoam o dorso dos afectos a chave a dialogar na fechadura condescendente o teu sempre hábil olhar que acolhe na solidão e timidez da penumbra o perdão e a sabedoria do coração.
Nocturna a mota de escape livre foi de súbito interrompida por metálico estâmpido no asfalto a queda de um anjo de cabedal a lua sorri maternal a dois tempos.