domingo, 28 de fevereiro de 2016

Desterrado, digo refugiado no Reino da Dinamarca


Senta-se
no Outono
no barco banco 
de verde tábua
cai a folha de ouro
que agora flutua
no seu olhar
de estátua
de azul
embargado
peixe de aquário
fora de água
refém do abismo
em julgamento
sumário
foi condenado
por perjúrio
e desmascarado
pelo verdete
das sereias.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

O Desterrado, Soares dos Reis

Por um fio



Sento-me na sinuosa
muralha da marginal
sucede-se um e outro
automóvel tardio
a resfolegar na noite
a soletrar o vazio
e o círculo vegetal
do alucinado farol
o marulhar das ondas
a lua é isco no anzol
um imperceptível rumor
na bóia sob a espuma
da solidão no infinito
bailado de um robalo
triste atraiçoado
no diáfono interlúdio
do quarto crescente
de um dividido coração
que o fio de linha ténue
pendura num simulacro
a que chamam vida
ou teatro de fantoches.

LISBOA, 25 de Janeiro de 2016

Carlos Vieira

Imagem de autor desconhecido

Poema a propósito da impossível coabitação


Eu não sou eu
olho-me de longe
aproximo-me de mim
olho-me nos olhos
para dentro de ti
desse precepício
onde não sei medir
ou pesar
quanto de mim
és tu
eu sou tu
em mim te
reconheço
observo-te
sem poder fugir
ocupaste-me
sem pedir licença
ao escrever
é a tua mão
que me guia
minha estrela
que na noite escura
na tua voz
me murmura
tu habitas
o meu canto
no entanto
sem ti
louco
como podia
ainda que rouco
da garganta
irromper
sei que
querendo
que a vida
fosse a amorosa
aritmética
de tu mais eu
vivo sempre
muito mais
os espinhos
que a rosa
essa falta
de métrica
por dentro
desse dilema
de querendo
amar-te
mais do que sou
do que tudo
te perdes
de mim
assim
para que possas
encontrar-me
inteiro
não te identifico
neste caos
do mundo
em que me cercas
esqueço
que és tu a mulher
luminosa
que me cega
e que existindo
em mim
desconheço
que vive
ao meu lado
sem saber
como sobrevive
e que me é
contudo
tão essencial
faz parte
do ar que respiro
amar-te.
Lisboa, 23 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Fulgor e cintilação


esta noite
de encanto
de instante
perplexo
da memória
cumprida
do cântaro
ancestral
do perfume
que inebria
do barro
o sabor
a beijo
da alegria rural
do solfejo
da água fria
do esplendor
do gesto
insaciável
sedução
na lâmina
da impossível
trégua
Lisboa, 21 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

O brilho do asfalto molhado...

O brilho do asfalto molhado
os lençóis de água
as nuvens baixas
a luz tépida
a nudez
nunca obscura
a vertigem felina
o vórtice do desejo
as lâminas faiscantes
um sorriso
que desarma
a criança a brincar
mãos sobrevoam o dorso dos afectos
a chave a dialogar na fechadura
condescendente o teu sempre hábil olhar
que acolhe na solidão e timidez
da penumbra o perdão
e a sabedoria
do coração.
Lisboa, 19 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Nocturna mota

Nocturna a mota
de escape livre
foi de súbito
interrompida
por metálico
estâmpido
no asfalto
a queda
de um anjo
de cabedal
a lua sorri
maternal
a dois tempos.
Lisboa, 19 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira

Estala o verniz...

Estala o verniz
e no fogo crepita
a raiva da palavra
que o silêncio desdiz
aquela que mordi
impaciente no rubor
indizível do oásis
que são teus lábios.
Lisboa, 19 de Janeiro de 2016
Carlos Vieira