quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Noite de breu e de bruma



ali estás
a vida
no meio de um mar
que está também 
de pernas para o ar

sobre si cai
a chuva de estrelas
melancólica
anunciada
pela voz rouca
das cagarras
que sobrevoam
a distância
entre os dois castanheiros
do quintal

entretanto explode
a fragância dos aromas
encontras precário
um caminho de luz 
e mistério
que se desfaz
em amálgama de espuma
e insónia

sobre o abismo 
o esplendor da noite e do canal
atravessas a ponte
de que desconheces
o rumo marginal

o manto da maresia
cobre a urze
em filigrana de prata
de nada
e sono

os melros
de bico amarelo
debicam a névoa
e por vezes a carne rosada
a bondade
dos figos


nas tuas entranhas
o mesmo triste vulcão 
de um amor de passagem
sem nome
que te surpreendeu
na bruma
dessa nunca extinta
solidão
que aos poucos te consome


Manadas (S. Jorge), 19 de Agosto de 2015
Carlos Vieira



segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Respiro esta explosão de verdes...



Respiro
esta explosão de verdes
ponteados de rosa
dos aloendros 
e cardeais
agitando o mar ao fundo
poentes
outras flores de espuma 

na penumbra dos espinhos acerados 
reflexos de sal 
e peixes tímidos
o canto do melro
eloquente
alude ao insondável mistério
das ilhas

e nele sobrevive 
exangue
um familiar
desesperado coração 
da noite.

Manadas, S. Jorge, 3 de Agosto de 2015
Carlos Vieira

domingo, 2 de agosto de 2015

Pedra pomes



Fixo
o fogo do olhar 
na porosidade
do seu dorso erecto
entre o rumor
do banho
adivinho-lhe
o seu corpo que dança
antes da fragância 
que inibria
e o voo convexo
da sua mão fechada
na leveza 
da pedra pomes
por debaixo
da sua pele
ressona um vulcão
adormecido
que sonha 
no caos do coração
a limpidez
do futuro.

S. Jorge, 2 de Agosto de 2015
Carlos Vieira


Rasgando horizontes



Ali estás
a tua pontiaguda
verticalidade
a coberto de um véu
de névoa
e um sol
a resfolegar
pousado no cume
da solidão
que escorre
pelos flancos
da tristeza
desce
um manto
de bruma
que o deixa
seminu
entregue
a si mesmo
na horizontal
o mau tempo
e o canal
eu e tu
aqui estamos
de novo
frente a frente
equidistantes
companheiros
em separadas ilhas
de alegria contida
com tantas viagens
por contar
e tanta despedida
e silêncios cúmplices
de permeio
nas entranhas
um grito
prestes a irromper
um vulcão interior
voz de negada misericórdia
a que se junta
à daqueles
que escalam
o alto pico da justiça
por fazer.

S. Jorge, 2 de Agosto de 2015

Carlos Vieira

terça-feira, 28 de julho de 2015

Subo...

subo
a escada em espiral
da noite
e da torre da madrugada
lanço as sementes
de um sonho
com raízes nas trevas
e os gestos precários 
dos afectos
da luz

Lisboa, 28 de Julho de 2015

Carlos Vieira

Uma pedrada no charco

Uma pedrada no charco
o teu rosto na água estagnada
uma leve ondulação
o teu sorriso que se esbate 
tristemente
os rios secos 
e os corpos cansados do Verão
a longa espera da corrente
de um turbilhão
que nos lave
que nos leve

Lisboa, 28 de Julho de 2015

Carlos Vieira

segunda-feira, 27 de julho de 2015

o meu reino que é deste mundo


oiço um motor de rega
monótono
uma libelinha atravessa o rio 
em voo rasante
um cachorro truculento
embrenha-se no canavial
o meu pai
encaminha a água
e perseguindo as toupeiras
pragueja 
eu obrigo
o grilo a sair da toca 
com as cócegas
de um feno

no próximo Verão
terei de pé
um novo mundo

Lisboa, 27 de Julho de 2015

Carlos Vieira