domingo, 15 de março de 2015

Poema "Pacemaker"



Ouve-se o silêncio
o mínimo eco das palavras
que ficaram por dizer
a ausência subtil do gesto
a florir discretamente
no jardim interior
da solidão
existe ainda
num pensamento breve
a nuance de um perfume suave
pareceu-lhe reconhecer
no intermezzo
da luz velada do tule da cortina
da janela
a coexistência familiar
de uma precária tragédia
e uma leve sombra que lhe perpassou
pelo rosto
adivinhou-lhe
a trajetória do desvio num sentido
quase sentimental
traindo-lhe a independência do olhar
enfim por ali ficou
solteira
nesse abismo
de contracenar a sua arritmia
com o mundo
umas vezes teve a natureza do gato felino
a paciência e a quietude
quando se lhe pediria eloquência
e outras vezes apenas veemência vegetal
quando os tempos lhe exigiam
firmeza e atitude
agora permanece mais prostrada
nesse recôndito analfabetismo
do amor
resta-lhe a morte e a indiferença
e um pacemaker.

Lisboa, 14 de Março de 2015
Carlos Vieira






"Matter" by Angela Reily

domingo, 8 de março de 2015

A andorinha de azeviche...


A andorinha de azeviche
de um golpe fulminante
feriu de morte 
a manhã
com a cimitarra

das suas asas
desembainhadas
ficou a borbolejar 
a luz
silenciosa
esquartejada pelos muros 
e pela caliça 
no agonizar das casas térreas
onde se percebe
um rumor de artroses
e bicos de papagaio
a luz crua 
devolve-nos
a tristeza da ausência
das crianças
no ar 
há o mofo das arcas
a súbita andorinha negra
espalha a Primavera
pelos campos
das colheitas abandonadas
raros camponeses
atónitos
num gesto largo e generoso
ainda fazem voar
uma vaga de fé e de sementes.


Lisboa, 8 de Março de 2015
Carlos Vieira




sexta-feira, 6 de março de 2015

Limpa os olhos de fugida...



Desenho de Kathe Kollwitz

Limpa os olhos
de fugida
onde se pode 
ainda distinguir
a profunda humidade
de uma alegria breve
no entanto
no seu cabelo
desgrenhado
os pássaros
que desertaram
da guerra
dão-lhe ideias
fazem ninho
coro
na sua dor
inconsolável
confusos
na demência
que lhe desenha
o decote mais generoso
com que sai à rua
e invoca o seu filho
fora de contexto
disseram-lhe a frio
no seu coração
cresce o gelo
de sabê-lo
desaparecido
em combate
na vala comum
dos corpos
por identificar
chora pelo seu leite
e pelo sangue dele
ingloriamente
ambos derramados.

Lisboa, 2 de Março de 2015
Carlos Vieira


Ícaro me confesso


Falta-me o golpe de asa
e sobra-me
o que uns apelidam
de decência
outros a consciência dos limites
não tenho ataques de pânico
por enquanto
apenas ataques de asma
e essa claustrofobia dos novos tempos
das contas, das rotinas e das missões
e de alguma poesia.
Aproveito por vezes as correntes
das altas para as baixas pressões dos sonhos
e a vertigem dos gestos
a frontalidade das almas desbocadas
mas logo a temperatura do sol
a inacreditável solidão nos olhos das crianças
e a lâmina do frio e da fome
nos temperam a trajetória
e nos apressam a queda
Ícaros devolvidos à Terra
sem sonhos
e sem asas.

Lisboa, 6 de Março de 2015
Carlos Vieira

A Queda de Ícaro de H. Matisse

domingo, 1 de março de 2015

Contraponto crepuscular

Um menino 
corre a tarde toda,
interruptamente
a bola
corre de um lado 
para o outro.

O poeta 
vive atordoado
na preocupação
do rumo
antecipado
da bola,
se for 
para a estrada
pode
vir um carro...

O poeta 
deixou 
de ter assunto
e descansa,
depois da voz 
e da mãe tranquila
terem voado 
da janela,
chamando o rapaz,
a seguir correu
a persiana
e o poeta ficou
em paz.

Tudo aponta
para a mãe
o crepúsculo
aceso,
a contida
exuberância
dos insetos
que habitam
o princípio da noite,
um poeta 
nunca vive
com muitas certezas.

O poeta 
terá ficado cego,
nestas circunstâncias,
tal só acontece
se se aconchegou
perigosamente
à imperceptível
e sublime
resistência das cores
e dos materiais
deles ficando 
embriagado.

O poeta
estuda agora 
com minúcia
o saber incorporado
que dá alma aos objetos
e abandonou-se
à clausura
criada pelo vai e vêm
da sombra do pêndulo
suspenso 
sobre a solidão.

Esta noite viverá
da memória
de uma bola de futebol
da alegre chilreado
de um menino
que corre na relva 
do largo
e da voz fresca 
serena
daquela mãe 
emboscada
atrás da persiana
de alguma forma
também cega
e presa 
noutra solidão.

Lisboa, 1 de Março de 2015
Carlos Vieira

Pequenas loucuras e absurdos


I

Senta-se na esplanada
e pede um café 
insistentemente
abandona-o 
na mesa já frio 
e vai-se embora 
sem pagar
afogueada.

II

Chegou à paragem
e perguntou 
pelo autocarro n.° 16
um passageiro
disse-lhe que hoje domingo 
não passava
a senhora de meia idade
respondeu 
que só o iria apanhar 
na segunda-feira
depois de amadurecer
ideias 
e de planear
o destino e o fim
da viagem.

III

Foi comprar flores
pediu três rosas
do vermelho
dos seus lábios
e que dessem mais cor
ao rosa pálido
das suas mãos suaves
em rosa pálido.

Lisboa, 1 de Março de 2015


Carlos Vieira

Hora da visita



No serviço de neurologia
do Hospital de Santa Maria
cada palavra tem a beleza
de uma flor fora de estação
a frase em esforço conseguida
nos lábios pacientes
é sinfonia ou poema de luz
a iluminar os rostos familiares.

Lisboa, 1 de Março de 2015

Carlos Vieira