domingo, 8 de março de 2015

A andorinha de azeviche...


A andorinha de azeviche
de um golpe fulminante
feriu de morte 
a manhã
com a cimitarra

das suas asas
desembainhadas
ficou a borbolejar 
a luz
silenciosa
esquartejada pelos muros 
e pela caliça 
no agonizar das casas térreas
onde se percebe
um rumor de artroses
e bicos de papagaio
a luz crua 
devolve-nos
a tristeza da ausência
das crianças
no ar 
há o mofo das arcas
a súbita andorinha negra
espalha a Primavera
pelos campos
das colheitas abandonadas
raros camponeses
atónitos
num gesto largo e generoso
ainda fazem voar
uma vaga de fé e de sementes.


Lisboa, 8 de Março de 2015
Carlos Vieira




sexta-feira, 6 de março de 2015

Limpa os olhos de fugida...



Desenho de Kathe Kollwitz

Limpa os olhos
de fugida
onde se pode 
ainda distinguir
a profunda humidade
de uma alegria breve
no entanto
no seu cabelo
desgrenhado
os pássaros
que desertaram
da guerra
dão-lhe ideias
fazem ninho
coro
na sua dor
inconsolável
confusos
na demência
que lhe desenha
o decote mais generoso
com que sai à rua
e invoca o seu filho
fora de contexto
disseram-lhe a frio
no seu coração
cresce o gelo
de sabê-lo
desaparecido
em combate
na vala comum
dos corpos
por identificar
chora pelo seu leite
e pelo sangue dele
ingloriamente
ambos derramados.

Lisboa, 2 de Março de 2015
Carlos Vieira


Ícaro me confesso


Falta-me o golpe de asa
e sobra-me
o que uns apelidam
de decência
outros a consciência dos limites
não tenho ataques de pânico
por enquanto
apenas ataques de asma
e essa claustrofobia dos novos tempos
das contas, das rotinas e das missões
e de alguma poesia.
Aproveito por vezes as correntes
das altas para as baixas pressões dos sonhos
e a vertigem dos gestos
a frontalidade das almas desbocadas
mas logo a temperatura do sol
a inacreditável solidão nos olhos das crianças
e a lâmina do frio e da fome
nos temperam a trajetória
e nos apressam a queda
Ícaros devolvidos à Terra
sem sonhos
e sem asas.

Lisboa, 6 de Março de 2015
Carlos Vieira

A Queda de Ícaro de H. Matisse

domingo, 1 de março de 2015

Contraponto crepuscular

Um menino 
corre a tarde toda,
interruptamente
a bola
corre de um lado 
para o outro.

O poeta 
vive atordoado
na preocupação
do rumo
antecipado
da bola,
se for 
para a estrada
pode
vir um carro...

O poeta 
deixou 
de ter assunto
e descansa,
depois da voz 
e da mãe tranquila
terem voado 
da janela,
chamando o rapaz,
a seguir correu
a persiana
e o poeta ficou
em paz.

Tudo aponta
para a mãe
o crepúsculo
aceso,
a contida
exuberância
dos insetos
que habitam
o princípio da noite,
um poeta 
nunca vive
com muitas certezas.

O poeta 
terá ficado cego,
nestas circunstâncias,
tal só acontece
se se aconchegou
perigosamente
à imperceptível
e sublime
resistência das cores
e dos materiais
deles ficando 
embriagado.

O poeta
estuda agora 
com minúcia
o saber incorporado
que dá alma aos objetos
e abandonou-se
à clausura
criada pelo vai e vêm
da sombra do pêndulo
suspenso 
sobre a solidão.

Esta noite viverá
da memória
de uma bola de futebol
da alegre chilreado
de um menino
que corre na relva 
do largo
e da voz fresca 
serena
daquela mãe 
emboscada
atrás da persiana
de alguma forma
também cega
e presa 
noutra solidão.

Lisboa, 1 de Março de 2015
Carlos Vieira

Pequenas loucuras e absurdos


I

Senta-se na esplanada
e pede um café 
insistentemente
abandona-o 
na mesa já frio 
e vai-se embora 
sem pagar
afogueada.

II

Chegou à paragem
e perguntou 
pelo autocarro n.° 16
um passageiro
disse-lhe que hoje domingo 
não passava
a senhora de meia idade
respondeu 
que só o iria apanhar 
na segunda-feira
depois de amadurecer
ideias 
e de planear
o destino e o fim
da viagem.

III

Foi comprar flores
pediu três rosas
do vermelho
dos seus lábios
e que dessem mais cor
ao rosa pálido
das suas mãos suaves
em rosa pálido.

Lisboa, 1 de Março de 2015


Carlos Vieira

Hora da visita



No serviço de neurologia
do Hospital de Santa Maria
cada palavra tem a beleza
de uma flor fora de estação
a frase em esforço conseguida
nos lábios pacientes
é sinfonia ou poema de luz
a iluminar os rostos familiares.

Lisboa, 1 de Março de 2015

Carlos Vieira

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Movimento de translação



Apenas
uma única palavra
em equinócio
por vezes rasa
outras vertical
devorada
por língua de fogo
boreal
enquanto se reacende
o murmúrio
do inédito desejo
em labareda
numa sede urgente
que desperta
subterrânea
num lençol
de água
o sonho
onde mergulha
a raiz de precária
que será uma papoila
dormideira
de coragem inútil
desfraldada
no início
do degelo da memória
para onde corre
a vertigem do sangue
dos inocentes
derramado
na imensa
superfície de neve
aí irrompem
tristes líquenes
no seu adejar
tímido
desajeitado
e saem a medo
as ideias
relutantes
e elementares
da quase eterna
hibernação
num frenesim
e tépida proximidade
de animais
solares.

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2015
Carlos Vieira