domingo, 9 de novembro de 2014

Palavras com significado

O artifíce
da palavra
ausculta
um desconhecido
sentido interior
murmura
consigo próprio
o desconforto
da viagem
cuida
da imperceptível
ternura
que percorre o ar
que as liga
as palavras escolhidas
e as que renova
e nas suas sílabas
vai crescendo 
em fogo lento
a raíz 
do canto
de um pássaro
que se tornou
a árvore
e a sua sombra
e adquirem o ritmo
da chuva caíu
na boca sequiosa
e naquela expressão
seca
nasce o rio
que corre
mais do que o grito
por um novo leito
e a partir
das suas margens
vai inaugurar-se
o crepúsculo do diálogo
onde os peixes
são versos soltos
que roubaram
a luz das estrelas
e agora o poema
está coberto de escamas
tornou-se armadura
de um poeta guerreiro
que voltou da batalha
da busca lapidar
da essência das palavras
e do silêncio
ao recolhimento
que o faz regressar
à descoberta 
de um outro tempo
a reclamar um valor novo
para a vida
dos que não tem
não sabem
ou não querem 
a palavra.


Lisboa, 9 de Novembro de 2014
Carlos Vieira










sábado, 8 de novembro de 2014

Jardim Zoológico contíguo à minha infância



Feri-me
num joelho
na altura
em que saltava
o muro 
para o mundo
do Jardim Zoológico
tinha amigos
entre a bicharada
e os tratadores
clientes fiéis dos copos de três
do meu avô
na Travessa das Águas Boas
tinha no horizonte ao fundo uma sebe 
que não me lembro
em que estação tinha flores violeta
por cima delas os longos pescoços 
manchados das girafas
desde esses tempos a espreitar
foi a calçada molhada de granito 
a reluzir
e os bassos anos sessenta
com inveja das nossas brincadeiras
das caricas
passado tão vivo
como o sangue que corre 
de um ferida que nunca 
vai sarar.


Lisboa, 8 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

Pão pão

Pão pão
queijo queijo
poema sem pastor

Lisboa, 8 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

Pão ou poesia

"Se tiver apenas dois cêntimos nas suas mãos, compre um pouco de pão com um e uma flôr com o outro." (Provérbio chinês)



Tem dias
que a poesia
anda arredia
as palavras
fogem
como se tivessem
visto bicho
há destes dias 
em que a gente
não sabe
onde nos havemos
de meter
e desaprendemos
de falar
e se falamos
logo
nos olhamos 
de lado
perante
a oportunidade
que perdemos
de ficar calado
este tempo
de Outono
de nudez
das nossas vidas
de sabermos tanto
e de possuirmos 
tanta coisa
e da escassez
de palavras
e da escolha dramática
ser cada vez mais
pão ou poesia.

Lisboa, 8 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Penas



A pluma
que voa e dança e plana
pousa na terra exausta
é aquela que foi ágil na tua mão
efémera memória de ave
foi toucado na revolta do índio
é suave dedilhar da plangente guitarra
forrou o catre da insónia
e sossegou os sonhos nunca realizados
foi a mesma que calibrou a viagem das setas
na sede do amor e da guerra
na sua avidez de sangue derramado
de onde escorreu o murmúrio ancestral
e o grito do silêncio dos que foram incinerados
na intolerância do fogo
e no esquecimento das cinzas e das masmorras
penas dos que amaram desmesuradamente
e lâminas da luz resplandecente
e experimentaram o gume da fome
que sobrevoa  os países
e das fraquezas fazem forças
e dão asas à liberdade.

Lisboa, 6 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


Chris Maynard

 

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Aguarela


Pingos de chuva
a tamborilar
no espelho
caligrafia
de água verde
que me escorre
do tanque
e do reflexo das faias
a aguilhoar
um céu de nuvens
jangadas de espuma
em usurária
discussão
de prata de lei
enquanto isso
a rã
retardatária
foge do poeta
que a surpreende
e salta
pensando-se
a salvo
para dentro
da armadilha
da poesia
depois
que passou muros
e barragem 
contra o tempo
ouço-a com o cinismo
dos desenganados
coaxar
um verso de folgo
a invadir-me
o tédio do despacho.

Lisboa, 5 de Novembro de 2014
Carlos Vieira



domingo, 2 de novembro de 2014

Anoitece



Não saí de casa
e já anoitece

à volta da auréola 
do candeeiro da rua
deixou de haver
uma legião de mosquitos
e isso pode querer dizer 
alguma coisa

no silêncio
da casa 
de onde não saí
pode-se escutar
o ranger subtil
das páginas 
de um romance
que desfolho
ou um clamor
das vozes da ficção
na sua nocturna
vida de tinta

enquanto tal
ondas de faróis
ciclicamente
vão golpeando 
a noite
de todos
quantos habitam
esta rua
a lembrar holofotes
em campos 
de concentração

para lá das cortinas
e das persianas
das gaiolas
das cozinhas
as pessoas 
à minha frente
pisam-se
literalmente
umas por cima das outras
e vice-versa
vagueiam lentas sombras 
domésticos dramas

há dois gatos 
indiferentes
à janela
um terceiro
no sofá sentado
vê televisão
tudo tão
previsível
como se fosse
ainda a preto
e branco

vou sair agora
porque à noite
todos os gatos
são pardos.

Lisboa, 2 de Novembro de 2014
Carlos Vieira