terça-feira, 2 de setembro de 2014

Refractar...

Refractar

no coração

este sentimento

esta paixão

por ti

e deixar que a sua luz

e o seu sal 

seja o mais puro animal

a galope nas veias

o cristal 

que no silêncio

da minha pele 

contra a tua

reinventa o fogo

te conquista o olhar

o mesmo desejo

por outro prisma

refractar.




Lisboa, 1 de Setembro de 2014
Carlos Vieira




Apresentações de Christy Lee Rogers

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O veado...

O veado 

atravessou no vau

perdi-lhe o rasto

o pasto dos líquenes

ajoelho-me

no pousio

e encosto o ouvido

no chão

no Verão

ao longe oiço o rio

e o rito

mais próximo

o rumor do cio

e da escrita

do coice

na sombra

do veado que partiu.



Lisboa, 1 de Setembro de 2014


Carlos Vieira

Ícones

ícones

esquissos de tempo

sementes onde o fogo adormeceu



Lisboa, 1 de Setembro de 2014


Carlos Vieira

domingo, 31 de agosto de 2014

Poema para uma aldeia abandonada I



Cúmplice do salgueiro,

vive à séculos 

no largo da aldeia,

consternado 

nos confins

de tanta ausência,

ao abrigo

da extensa sombra

do seu eremitismo,

atónitos

num afecto vegetal,

esforçam-se por cingir

estranhos mistérios

com sonhos recorrentes,

esconjurar

a culpa 

com o silêncio 

agridoce das amoras.



O chafariz

prossegue o seu inacessível

diálogo 

com o mármore rosa

desde a noite dos tempos,

agora interrompido 

menos amiúde

para a alquimia

das bocas sequiosas

cada vez menos jovens,

tanto tempo depois

da sofreguidão

dos cântaros

e das tardes, 

entrecortadas

pelas labaredas 

dos incêndios

e pelo coaxar das rãs.



Na janela entreaberta,

podia-se adivinhar

antes do frenesi do futuro

um rosto de aparente calma,

depois de um vendaval

doméstico

que foi a ânfora antiga

quebrada

e por detrás da cortina,

um côncavo bocejo

beijo

de jovem louca.



Intérpretes

desta absurda

coreografia,

de um desprendimento

sem rumo,

evocam a memória

dos que partiram

e confiam

que o seu gesto singelo

de se pentear 

na penumbra,

acompanhados

por aquele realejo de água

e de êxtase,

em esconderijos

de cambraia,

são eternos aprendizes

que se escutam no eco

da imortalidade,

distinguindo-se

na sua serena e tosca

imobilidade

da decadência do efémero.



Lisboa, 31 de Agosto de 2014

Carlos Vieira



sexta-feira, 29 de agosto de 2014

À espera da alta



Teu corpo pairava
sobre os diáfano lençol
enquanto dormes
o tráfico do teu sorriso
conjuga-se
com a luz volúvel da enfermaria
e teus sonhos
são pequenos pardais
empoleirados na cama articulada
à espera
que lhe dêem alta

Lisboa, 29 de Agosto de 2014
Carlos Vieira

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Vidas presas por um fio



tu ali estava mais frágil
do que era costume
heroína
do pós-operatório
lá fora
um helicóptero
acabara de chegar
tonitruante
eu assistia impotente
à luta desesperada
daquelas e das nossas
vidas presas
por um fio


Lisboa, 28 de Agosto de 2014

Carlos Vieira

Poema para o último dia na Terra



Voltarei
áquele banco
que na minha terra
se chama mocho
perante a grande audiência
e último recurso
na penumbra da figueira
voltarei a confessar que errei.
Perante o fragor dos aromas
a púrpura dos figos
o olhar complacente dos avós
o estrépito dos pássaros
e as suas lâminas de penas
afiadas na luz de veludo
do murmúrio da tua voz
vou assumir humildemente
a minha culpa.
No dia que o mundo acabar
do grande julgamento
irei aos figos contigo
os pássaros e os insectos
e outros pequenos animais
na sua feliz ignorância
vão desconhecer
que não se despedem
apenas do Verão
para nós
tal
será apenas uma coincidência
um final feliz
a recorrência discreta
da tua revelação.

Lisboa, 28 de Agosto de 2014
Carlos Vieira



Pintura de autor desconhecido