quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Nota Crespuscular

lá fora 
confirma-se 
o anunciado
aviso amarelo
no riso amarelo
do vento
cá por dentro 
prolongado
rima profundo
o descontentamento
um simulacro ressequido
em cada esquina
alguém que partia
entre dentes o gemido
de um mundo
em escombros 
na ruína
em fim de vida
ou apenas sombras
entediados espectros
de doutores
do desemprego
e que saem
do Mercado Sem Valoress
vergando os ombros
dos altos e baixos
no final de dia

Lisboa, 13 de Agosto de 2014
Carlos Vieira

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Marulhar



Deito-me na praia
e não sei 
se ouço

as ondas do mar
no clamor 
das vozes

se no marulhar
das vagas
escuto palavras
embargadas

dos naufrágios
e das viagens
sem retorno
sobram as gaivotas

interrompem
o silêncio
e interceptam 
o olhar

resta-nos
um vagar
de oiro
no sono
cálido de areia

um romper 
de bruma
e um torpor
de espuma

Nazaré, 11 de Agosto de 2014
Carlos Vieira



Todo o fim de tarde três andorinhas

Todo o fim de tarde três andorinhas
fizeram tangentes na piscina
por breves instantes ficou mais límpido
o azul do espelho de água 
e o seu olhar deixou de ser a nuvem
a sobrevoar o teu rosto.

Tojal, 11 de Agosto de 2014
Carlos Vieira



Frutos da memória



Emboscado na neblina de Verão 
desta madrugada do Oeste
espreito tuas longas pernas
teus seios fartos
enquanto colhes 
os figos pingo de mel 
de uma figueira
que existiu
ao fundo do quintal.

Lisboa, 11 de Agosto de 2014

Carlos Vieira

Poema exíguo

Poema exíguo 
numa noite de lua
muito cheia

raiz
de um sonho
mão alucinando
inquieta
na armadilha 
da lua maior
no pousio
de um pensamento
no seu feroz
desabrochar
nascente
onde os pássaros
da infância
eram de uma sede
que anoitecia
e vertiam seu canto
pelo vértice
das estrelas

Tojal, 10 de Agosto de 2014

sábado, 2 de agosto de 2014

No silêncio da noite

I
Já noite alta
os cagarros
apagam
não sei se o grito
se o canto

extinguem-se
na garganta
vulcânica
da noite

e na cúpula
das árvores
a medo
espreitam
as estrelas

II
são duas horas
da manhã
a minha cabeça
em erupção
e o meu corpo
é um penedo

III
no primeiro piso
da casa
o soalho deixou
de ranger
familiar
é este baixo
acústico
são três da manhã
e ouço ressonar

IV
não durmo
nem tenho insónias
esta casa 
é a caixa de ar
de um instrumento
que tudo faz ressoar

V
as horas
do meu relógio
fazem-se agora 
no sótão
do deambular
não sei
se de ratos
ou se das lagartixas

VI
são cinco da madrugada
a poente canta
o galo da tia Serafina
e a noite
perante o Pico
sonâmbulo
mais se agiganta

VII
despertam-me
mil e um pássaros
cantam incessantemente
nos castanheiros
harmónio
que me recorda
noites idas
pesadelos e impropérios
blasfémias
e maldições vencidas

VIII
cúmplices
repousam sobre a arca
regressada
da última viagem
das américas
um clarinete
e um oboé
depois a solo
oiço um assobio
está pronto
o café

IX
por fim
chegou a hora
da orquestra do silêncio
de sarar as feridas
do poema
que quero
agora povoado
de vozes emigrantes
esquecidas

Santa Rita, 2 de Agosto de 2014

Carlos Vieira

Dias de bruma V



esperavas-me
só 
no cais
enquanto
correm comigo 
acossando-me 
as canelas
o vento e a praia
dois cães

refém do caos
desnuda
de sentidos
não sei quantas vezes
foste devorada 
pela bruma
e te salvei

abracei-te
por detrás
surpreendida
estarei
onde não esperas

e no mapa
percorri o vazio
da tua silhueta
e a dúvida 
das encruzilhadas
mulher perdida

desconhecias
mas eu sempre
ali tinha permanecido
nunca saíra 
dessa terra
por ti sitiado

procuravas-me
num incerto
horizonte
também
eu aprendi 
a desconfiar
do amar-te
à distância

era o teu rumo
e tu a minha rota
farol
e desnorte
e acaso

por tanto 
nos amarmos
e nos desencontrarmos
somos agora 
gastas ilusões
e cansados rochedos
vencedores
e vencidos

Santa Rita, 2 de Agosto de 2014

Carlos Vieira