terça-feira, 24 de junho de 2014

Caiu da tua mão...

caiu da tua mão
o lápis
e partiu seu bico afiado
porém ficou
intacta sua alma 
sua coluna vertebral
de grafite
e continuou a sonhar 
risco após risco
a perspectiva
o esquisso 
de um outro voo

Carlos Vieira

Amor impraticável



Silêncio aflito
grito estrangulado
palavra murmurada
ave derradeira
véspera de água
desterro de um barco
corpo inanimado
tempestade crua
olhos marejados
sonhos soterrados
percorre a rua alagada
no oportuno apagão 
a ferida interrupta
é uma janela aberta
para o abismo
um sorriso esquecido
naquelas mãos acesas
esse peixe exausto
e assustado
cresce a árvore exuberante
por detrás
do beijo surpreendente
acreditamos agora
na inacreditável substância
das nuvens
respirando
no calendário dos meses
onde a solidão
inventa o desabrochar
das flores e das aves
em noites de insónia
onde amadureceu
a nascente 
do néctar indizível
dos cantos 
que fazem vibrar
os inquietos materiais 
com que são feitas
todas as horas 
em que pede descanso
um olhar
depois que regressa
ao carrossel
dos recônditos perfumes
de um aroma
em que acontece
a insensata veemência
do amor
que não se pode tocar
nem se pôde saborear.

Carlos Vieira

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Sem amor nem distância



nesta prisão de verde triste
apenas um pássaro pia

responde-lhe um trovão
da vastidão do azul

neste diálogo de surdos
o poeta representa
a humana ignorância

de querer ver sempre mais
para lá dos humanos sentidos

e assim se vai perdendo
na volúpia da distância

Lisboa, 23 de Junho de 2014

Carlos Vieira

domingo, 22 de junho de 2014

O fogo posto de palavras



Toco as palavras
escaldam
incandescentes
espadas
no meio da planície
da batalha
deslembradas
sem sombra por perto 
ou pássaro 
que no seu canto
delas se condoesse
palavras 
que ardem na garganta
e queimam os lábios
arrancadas 
na urgência do coração
pedras lascadas
para a caça
da sobrevivência
afiadas
no cume da solidão
das montanha
palavras cansadas 
do diálogo vazio
antes da cinza
nunca ditas
que iluminam o silêncio
nunca caladas
pelo fogo eterno
de toda a Inquisição
penduradas no poema 
feito de palavras 
na injustiça da pele 
marcada
e em carne viva
sem história
e sem remédio.




um secreto mundo



há muito tempo
que não vejo
um percevejo
ou será 
que vi alguma vez?
se vi não me apercebi
como tantas vezes
acontece
com o discreto
rumor do mundo
do insecto
e na visita cobarde
com seus subterfúgios
de parasita
e todos
os "perce-beijos"
de traidor

Lisboa, 22 de Junho de 2014
Carlos Vieira

sábado, 21 de junho de 2014

miragens



bola de Berlim
com creme
e açúcar
e areia
porque sim
contra o peso 
o delicatessen
e a medida
da higiene
europeia
e um fragmento
de mar 
a conspirar
pelo rabo
do olho
num dia de sol
limpo

Lisboa, 21 de Junho de 2014

Carlos Vieira

Homem matinal



Vai pelas bermas
das veredas
na vertical da clorofila
onde se insurgem
pássaros matutinos
às escondidas
sobem os caules caracóis 
canários
na sua lentidão e com gotas
de orvalho
da madrugada que descem 
em contramão 
tudo animado pelo assobio
da brisa
em arrepio e dança das canas
há pequenos 
animais depois do sono
que suscitam
tramas e redes efémeras
oscilações
cúmplices do agricultor
a caminho
dos frutos e de exortar a horta
que expostos
a perigos e pragas várias
desta chuva
fora do tempo e de si
vai inseguro
e já dormiu a sono solto
o homem 
que desce a vereda
interpelado
pela ternura das plantas
e dos bichos
embalado pelas colheitas.

Lisboa, 21 de Junho de 2014
Carlos Vieira