terça-feira, 10 de junho de 2014

Breves apontamentos da viagem Lisboa-Amesterdão

I
aqui estou eu 
a voar pelo meio das nuvens
o que é diferente 
de andar nas nuvens

II
neste avião airbus A320
mais perto do céu com escala 
em Amesterdão
mantenho-me nesta altura
à mesma distância de Deus

III
a minha janela
é por cima da asa esquerda
temos tido
um pouco de turbulência
como uma falésia cinzenta
uma nuvem ergue-se 
à nossa frente
entramos por ela a dentro
o poema não consegue
descer à Terra
vivo em várias atmosferas 
e matizes 
de cinzento

IV
de olhar fixo em busca
de um horizonte
esqueço-me de ler
mesmo à minha frente
ao longo da asa
" Do not walk outside this area"

andar a voar
por cima das asas
o homem essa estranha ave 

V
por momentos
a mínima alteração
do "trabalhar" 
do motor do avião
suscita 
um outro ritmo cardíaco
no bater do meu coração
estranha convergência
amor impossível
de ocasião

VI
passei 
há momentos
pela cordilheira dos Pirinéus
daqui de cima
não distingo
os picos das neves eternas
à memória
e por alto
apenas os trilhos 
esquecidos
dos imigrantes de "assalto"
dos anos sessenta
por onde andas meu pai?

VII
daqui
de entre as nuvens
sonhos prosaicos 
de sardinhas 
meus e dos pescadores
da única traineira
no encrespado mar
do Golfo da Biscaia
a única diferença
é que as minhas
são douradas do fogo
as deles prateadas de azul e sal
sonhos de sardinhas
entre as nuvens
sem espinhas

VIII
hoje dia 10 de Junho
dia de Portugal
recebi uma medalha
da cereja do Fundão
das minhas mãos
a 10 mil metros de altitude
por cima de Orléans
que distinta auréola grená
na minha camisa branca
se bem que um pouco
deslocada
um pouco acima do umbigo
também eu recebi
uma medalha

VIII
justamente
a meu lado
a mãe e seu bébé
esperei o pior
por este conjunto de altar
quase rezei
mas o pequeno deixou
escorrer a poesia
e embalou-o as nuvens
do leite materno
e de divino
apenas o seio castanho
que pelo canto do olho
não pude deixar 
de vislumbrar

IX
estou absolutamente 
sozinho na estação de Diemen Zuid
bem existe uma gaivota que perdeu o Norte
um avião da KLM a fazer-se à pista
o crocitar de um corvo
a interromper o ruído de fundo 
do tráfego
eu e a máquina dos bilhetes
travamo-nos de razões
e se não fosse carlos
uma miúda providencial
coberta de tatuagens 
e furada de piercings
e dinheiro trocado
tinha dormido
nesta estação
no fim deste meu mundo

X
aqui chegado
dez minutos a pé
pela floresta
um hotel sem história
junto a um discreto lago 
uma queda de água zen
com salada
até começar a escurecer
ao ritmo de uma canção romântica
dos anos oitenta
um pato pousou-me
na mesa
fiquei a olhar para ele
entendi-o como um sinal
enviado por Deus
para ele e para mim
por hoje
chega de voo
e deste meu grasnar

Amesterdão, 10 de Junho de 2014
Carlos Vieira






















segunda-feira, 9 de junho de 2014

6 de Junho de 1944



Um rosto de espanto
incrédulo, sem pé,
perante o vazio.

A mão acesa 
com uma granada
essa flor quase animada.

O corpo arrojado
desmembrado, uniforme
rasgado, em mais um dia D.

A praia é um jardim
de minas e arame farpado,
um perfume de sal e pólvora.

A areia juncada de corpos
a apanharem sol, inútil é o efeito protetor
do próprio sangue.

Os soldados chegam 
nas barcaças de braços abertos 
vão abraçar a morte.

Morre gente 
aos milhares pela Democracia
nas praias do dia D e nos outros dias.

Por ti, por mim, por nós
morrem todos os dias na indiferença
parece que foi ontem.

Foi hoje, ontem, foi há muito tempo
e valeu a pena, quem esquece?
quem é que se lembra?

Para que serviu
o fogo de rajada, a baioneta em riste?
E agora calada, e agora calada!

E agora aqui estamos
mais um dia triste de ondas 
de medos e de frio.

Mais uma noite 
de desembarque na praia 
de uma qualquer Normandia.

Lisboa, 6 Junho de 2014
Carlos Vieira



sábado, 7 de junho de 2014

sorriso na penumbra



já tarda
em anoitecer

já a ave 
prolonga
o seu voo

já o amor
não demora
a adormecer

eu vou ficar
aqui sentado
no alpendre

a ave e a lua
vão pousar
no meu colo

a seguir
vou pendurá-las
no cabide

eu irei a tactear
na obscuridade até à cama
seguir o teu perfume

ainda a tempo
de ver o teu sorriso lunar
a desvanecer

Lisboa, 7 de Junho de 2014


Carlos Vieira

cuidado com as palavras



as palavras
menos tímidas
hoje vieram 
comer-me
à mão
se me distraio
diria adeus
ao indicador
todo o cuidado
é pouco
com as palavras
agora 
que já se foram
os anéis.

Lisboa, 7 de Junho de 2014
Carlos Vieira

Crepúsculos A17

há um anúncio
de chuva
no céu de chumbo
nos espelhos
de água 
de arroz

apetecia-lhe
agora
uma fatia
de melancia

arrasta
polígonos
ancestrais 
de nós
com cordas
feitas 
de elos e luas
de palavras
onde tange
a poesia

de fundo
o cheiro putrefacto
das celuloses 
e estrias
de fumo
e uma melancolia azul
impaciente 
de estrelas

ali
tirou 
as galochas
para lavar 
os pés
que viu 
descalços
pela primeira vez

um comboio
eléctrico
suburbano 
curto circuita
a paisagem
embalado
entre dois tons 
de verde
e de verdade

podia ver-te
à janela
invocando
a renovada
serenidade
da tua pose
de perfil

ali ao lado
o frágil encanto
no mesmo tempo
dúctil 
do pergaminho
que emana 
perfume
subtil

e desejo
em branco
incandescente
de percorrer
esta distância
do amor
a tinta permanente

o escritor
fuma
o cachimbo 
da paz
perplexo
interroga
a evolução
no matiz 
da paisagem
e da luz

percebe
a sua ausência
e o teu desassossego
no timbre
dos pássaros

Lisboa, 7 de Junho de 2014

Carlos Vieira

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Comércio da dor


Uma ambulância
esbaforida
e com os pirilampos acesos
sobe aos gritos 
pela rua acima

transportam 
uma dor calada
igualmente desesperada
os transeuntes 

a cidade 
está em convalescença
sofreu cirúrgica intervenção
ainda se encontra
aqui e ali esventrada
ligada à máquina

o país
esse prossegue 
a sua lenta agonia
anémico
abúlico
entre o tratamento
inconsequente
e os efeitos secundários
inconsolável
perante tanta urgência

a sua gente
sem sossego
a precisar de alento
entrega-se 
a essa generalizada
indiferença
a que chamam
morte lenta
destino
fado

eu assisto
a este melancólico
mercado dos sonhos
a preço controlado
à morte 
ao retardador
a este imenso circo
prestigidatação 
anestesia colectiva.


Lisboa, 4 de Junho de 2014
Carlos Vieira

terça-feira, 3 de junho de 2014

Amor impossível II



Deito-me
fecho os olhos
que as raízes
ávidas
me possuam
lentamente
sou eu ainda
sem palavras
que me elevo
ao cimo da terra
nos meus braços
suporto ninhos
e escondo
os pássaros do canto
e invento
os sonhos e os frutos
reconheço o sumo
da tua boca
eu durmo
e sem nada fazer
tu te entregas
no céu
de jogo viciado
e tu me vences
na terra
em campo aberto
numa luta tenaz
entre não ceder
à loucura
sem ficar escravo
da sensatez
sobreviver
a um amor
impossível.

Lisboa, 3 de Junho de 2014

Carlos Vieira