I
aqui estou eu
a voar pelo meio das nuvens
o que é diferente
de andar nas nuvens
II
neste avião airbus A320
mais perto do céu com escala
em Amesterdão
mantenho-me nesta altura
à mesma distância de Deus
III
a minha janela
é por cima da asa esquerda
temos tido
um pouco de turbulência
como uma falésia cinzenta
uma nuvem ergue-se
à nossa frente
entramos por ela a dentro
o poema não consegue
descer à Terra
vivo em várias atmosferas
e matizes
de cinzento
IV
de olhar fixo em busca
de um horizonte
esqueço-me de ler
mesmo à minha frente
ao longo da asa
" Do not walk outside this area"
andar a voar
por cima das asas
o homem essa estranha ave
V
por momentos
a mínima alteração
do "trabalhar"
do motor do avião
suscita
um outro ritmo cardíaco
no bater do meu coração
estranha convergência
amor impossível
de ocasião
VI
passei
há momentos
pela cordilheira dos Pirinéus
daqui de cima
não distingo
os picos das neves eternas
à memória
e por alto
apenas os trilhos
esquecidos
dos imigrantes de "assalto"
dos anos sessenta
por onde andas meu pai?
VII
daqui
de entre as nuvens
sonhos prosaicos
de sardinhas
meus e dos pescadores
da única traineira
no encrespado mar
do Golfo da Biscaia
a única diferença
é que as minhas
são douradas do fogo
as deles prateadas de azul e sal
sonhos de sardinhas
entre as nuvens
sem espinhas
VIII
hoje dia 10 de Junho
dia de Portugal
recebi uma medalha
da cereja do Fundão
das minhas mãos
a 10 mil metros de altitude
por cima de Orléans
que distinta auréola grená
na minha camisa branca
se bem que um pouco
deslocada
um pouco acima do umbigo
também eu recebi
uma medalha
VIII
justamente
a meu lado
a mãe e seu bébé
esperei o pior
por este conjunto de altar
quase rezei
mas o pequeno deixou
escorrer a poesia
e embalou-o as nuvens
do leite materno
e de divino
apenas o seio castanho
que pelo canto do olho
não pude deixar
de vislumbrar
IX
estou absolutamente
sozinho na estação de Diemen Zuid
bem existe uma gaivota que perdeu o Norte
um avião da KLM a fazer-se à pista
o crocitar de um corvo
a interromper o ruído de fundo
do tráfego
eu e a máquina dos bilhetes
travamo-nos de razões
e se não fosse carlos
uma miúda providencial
coberta de tatuagens
e furada de piercings
e dinheiro trocado
tinha dormido
nesta estação
no fim deste meu mundo
X
aqui chegado
dez minutos a pé
pela floresta
um hotel sem história
junto a um discreto lago
uma queda de água zen
com salada
até começar a escurecer
ao ritmo de uma canção romântica
dos anos oitenta
um pato pousou-me
na mesa
fiquei a olhar para ele
entendi-o como um sinal
enviado por Deus
para ele e para mim
por hoje
chega de voo
e deste meu grasnar
Amesterdão, 10 de Junho de 2014
Carlos Vieira