sexta-feira, 16 de maio de 2014

barco de papel



quero um poema
que abarque
o teu sorriso puro 
de alumiar
o fim da nossa primeira noite
e que ao mesmo tempo
tenha um pé
na madrugada de um futuro
naquilo
que pensávamos
poderia ser sorridente
e do alto da gávea 
de um verso 
pudesse avistar
a poente 
o regresso da tua silhueta
e na náusea da espera
poderá pousar
a bordo da poesia
a ave 
de uma secreta alegria
com que me ensinaste
a vencer a grande e a pequena
tempestade

Lisboa, 16 de Maio de 2014


Carlos Vieira

Pólens



vento 
do fim de Maio
traz ao teu frágil pulmão
um corropio de papoilas
o miar dos gatos
alergias
coisa simples

em Maio 
teu pulmão
e o vento meu irmão
a brincar
com a frágil papoila
agora tosse 
solta-se a espectoração
pequenas complicações

foi em Maio
o teu pulmão na berma
da estrada dura
a asma 
depois da gargalhada
a partitura da tosse
início da crise
incidentes de menor
importância

em Maio
por causa do pólen
e das aves
a poesia ganha cor
perde pulmão
até as papoilas
erguem gritos efémeros
simulacros de dor
onde transparece o ópio 
para grandes males
grandes remédios
e efeitos secundários

Lisboa, 16 de Maio de 2014
Carlos Vieira

tempo de chumbo



dia estranho
um calor abafado
que algumas bátegas
de água vieram suavizar
a passarada canta ao desafio
eu com esta disposição de peixe
a querer sombra de águas profundas
ou fora de água de olhos esbugalhados
dilema de mãos a abanar e de encruzilhada
simplesmente azamboado da cada vez maior
dificuldade em recuperar de noite mais agitada
ou deste tempo cada vez mais difícil e conturbado

Lisboa, 16 de Maio de 2014
Carlos Vieira



                                                     Foto retirada do Los Angeles Times

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Meias de vidro

Lembro-me
como se fosse hoje
usavas meias de vidro
até ao fim das tuas pernas
inquebráveis e longas 
muito mais 
do que as noites
depois olhava-te 
tão fixamente
como nos atraem 
os astros
e os abismos
por dentro de nós
amarinham
todos os demónios
e eu que me tinha
em tão grande conta
tão hábil e dotado
tentava desevencilhar-me
de ser estrangulado
pelo poder absoluto
dos cristais
que faiscavam
das tuas meias de vidro.


Lisboa, 13 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Tinha uma fisga...

tinha uma fisga 
de elásticos franceses
um luxo
comparadas com aquelas
feitas de câmaras de ar
de bicicleta

Lisboa, 13 de Maio de 2014
Carlos Vieira

terça-feira, 13 de maio de 2014

Sei de um ninho!

- Sei de um ninho!
Tempos em que saber de um ninho
era um segredo maior
só meu e do passarinho.

Lisboa, 13 de Maio de 2014
Carlos Vieira

paredes meias



entre quatro paredes
um piano a duas mãos
o ranger das portas
e de janelas
o mistério dos ruídos
no sótão
a subtil alteração da brisa
no estendal
a subtileza do eco dos teus pés
em peúgas sobre o soalho
entre quatro paredes
depois de oito dias a sós
agonias de acordeão
pela mobília a memória 
do estremecimento da tua voz
o ritmo febril da percussão
acompanhado de especiarias
nos alumínios da cozinha
entre quatro paredes
de betão
o vidro duplo
o aproveitamento energético
a dança das cadeiras
cada coisa em seu lugar
eu sou duro de ouvido
"- Concede-me a honra desta dança!
- Eu não sei dançar!"
só às paredes confesso
minha casa da música
meu silêncio
minha respiração

Lisboa, 13 de Maio de 2014
Carlos Vieira