domingo, 20 de abril de 2014

Ela sacode...

ela sacode 
o tapete
persa
e dele caiu 
o brinco
o mesmo 
que ouviu
o beijo
e calou
o segredo
e se desprendeu

Lisboa, 19 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Hora de recolhimento

Embrenho-me 
num pequeno 
bosque de bétulas
vislumbro um vulto 
talvez um animal
um veado à solta
pura reminiscência 
que suscita a catedral
de pratas dos troncos
no vitral feito da nervura 
das folhas refractada 
em reflexões de luz difusa
de brincos precários 
de água e sempre 
renovadas ilusões.

Lisboa, 20 de Abril de 2014


Carlos Vieira

sábado, 19 de abril de 2014

Balada do desempregado

senta-se no chão
ali naquela rua do Poço do Bispo
esfrega bem os olhos
limpa a única lágrima
que lhe escapou
tem nas mãos um papel
esborratado
é para o fundo de desemprego
ainda tem coração
foi sempre um homem de coragem
de desafios
-compreendo, sim! é a crise!
a inexistência de encomendas
os produtos descontinuados
- obrigado pelas palavras!
- o sr. foi um empregado modelo!
só os cobardes é que desistem
não é surdo ou mudo
possui agora toda aquela rua 
e todas as outras da Nação
- compreendo, sim! 
as economias emergentes!
apesar de tudo pensas 
na falta de competividade 
aos cinquenta e cinco anos
tens casa para pagar e família
foste despedido e ainda sonhas
eis uma bela oportunidade 
para mudar de vida
para pensar no futuro
de poder conhecer outro país
é como se tivesses
agora chegado ao mundo 
- compreendes, sim! 
a bolha imobiliária!
o Lehman Brothers! 
a divída pública!
e ainda ter duas mãos
para esconder "as vergonhas"
senta-se no chão 
de uma rua do Poço do Bispo
e esfrega bem os olhos
à vergonha de não poder trabalhar
junta-se a culpa de não ter que comer
que belo serviço foi arranjar
neste ocaso da vida
tem de haver alternativa
à luz do comboio
ao fundo do túnel

Lisboa, 19 de Abril de 2014
Carlos Vieira

As cidades e os campos

Sinto-lhe a falta, daquele dorso escuro da serra matizada de aromas de urzes, deitada, desenrolando na minha frente a lascívia, reinventando os mistérios das grutas e a clarividência súbita das penedias.
No sopé, distribuindo-se pela linha de água, a sombra dos troncos magros das árvores, coroadas de cabeleiras fartas, refresco os pés no arroio com o olhar embaciado nas amoras dos silvados, enquanto a mão ágil evita a voracidade dos espinhos.
O meu olhar embevecido desce pelo esverdeado claro e escuro dos campos mais ou menos abandonados e pelas arestas dos muros de calcário que protegem as culturas das intempéries, forrados de musgos e líquenes.
Poder amar a aritmética dos pomares e os cachos de pequenos sóis, a sinfonia minimal repetitiva e madrugadora dos motores de rega e a alegria das batatas arrancadas, agora por cima da terra fresca.
Memórias do triunfo do sal por cima dos pepinos cortados em quatro talhadas, depois conhecer a audácia e a destreza de subir a árvore e devorar as cerejas. Hoje, ainda alguém sabe cortar uma cana do canavial e fazer uma gaiola para um grilo ou construir uma flauta?
Pouca gente sabia onde se podia atravessar o rio e atalhar caminho em tempo estival, saltando de pedra em pedra sem escorregar, enquanto os pássaros e os pensamentos esvoaçavam, em torno da invulgar proliferação dos insetos e dos pequenos bichos álacres.
Descia a ladeira e as ovelhas tosavam a erva fresca e uma já velha mula ruminava, enquanto me observava sempre curiosa, subia-lhe a garupa e em devaneios, todo os dias, cavalgava um país.
Agora, aqui no meio do tráfego, da rua da urbe, sonho a aldeia, sou habitado desta diferença, sinto a falta do vento, da melancolia das horas onde nada acontece, a eterna presença do limoeiro no quintal, o inconfundível manto do crepúsculo a apagar as casas, os animais nas pastagens, ao longe identifico o espetro dos utensílios rurais.
Vou a correr para o campo reviver o aroma, revisitar nos prados, os grandes penedos e as árvores mitológicas dos caminhos e ao ali chegar, assaltam-me os sonhos dos bancos dos jardins, vêm até mim toda a humanidade dos rostos inquietos na multidão, as tintas queimadas, a ferrugem do ferro forjado das varandas, a diversidade de janelas e portões, onde rostos por vezes espreitam ou são por nós, por vezes vigiados.
Grandiosa é a noite das cidades, na solidão extraordinária das penumbras. Sinto-lhe a falta, dos círculos de luz dos candeeiros na rua e suas efémeras ternuras e pequenas iluminações, do néon dos anúncios sempre apelando a nossa perplexidade e a nossa compreensão.
O ruído de fundo dos automóveis para que seja impossível de todo, a tristeza mais pura e que seja tão mais fecunda a silente solidão. Acrescento aqui, os momentos mágicos do cinema, connosco mesmo, todos os personagens do filme e o ruído da máquina de projeção.
Como se pode viver sem saber articular a ocasião das gruas nos portos, o sussurrar das embarcações, o marulhar das ondas nos cascos e o desgaste destes contra o cais.
A ordem tricolor dos semáforos, a vertigem das passadeiras, a razão dos parqueamentos, o peso dos elevadores, o alerta das campainhas, essa imensa panóplia de estruturas que as cidades nos concedem, para assim podermos aceder a essa ilusão e embuste da moderna democracia do mundo.
Estou aqui ao pé deste pessegueiro e tenho necessidade dos encontros nas esquinas e os perfumes que nos encantam nos passeios, quase sinto nos meus dedos a vertigem dos tecidos, a bissetriz dos olhares, na coincidência das paragens.
Por último, estou sempre a meio caminho, neste avião da poesia que atravessa a tarde e vai ao encontro do alvoroço dos países, sou pois afinal assim por alto, nestes versos de cinto apertado, o resultado desta interceção que me faz sobrevoar o campo e a cidade.

Lisboa, 19 de Abril de 2014
Carlos Vieira

sexta-feira, 18 de abril de 2014

O córrego

o córrego
já só existe
para mim
no sulco
da poesia 
tento ainda
agora ouvir 
a sua melodia
na noite triste
coincide 
na insónia
dos canos
da água
da companhia
o desengano
vence-me
nem a sede
nem a solidão
é a mesma

Lisboa, 18 de Abril de 2014
Carlos Vieira








Sem palavras I



ladra 
desesperado
de fome 
ou da solidão
no fim do casario
um cão

a coluna de fumo
eleva-se 
de uma chaminé
à espera 
que se legende
a vida
sem horizonte

um pinhal 
esconde
a alma pura
do pinhão
o que está para lá
do abismo
a quem chamam
desconhecido

alguém espera
as palavras
que partiram
destemidas
pela estrada 
de terra batida
que voltem
com pessoas

os melros 
parecem letras 
pretas
gordas
que ficaram
por ali
a debicar
em silêncio

eu fico 
ali da janela
a esquadrinhar
no fim do lugar
anónimo
sobrevivente
a desdenhar
da crença
no princípio 
do mundo 


Lisboa, 18 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Tornozelo...

tornozelo
esse osso esquecido
ao articular os teus passos
na feliz coincidência do teu corpo
rumo ao apelo dos meus braços

Lisboa, 18 de Abril de 2014


Carlos Vieira