sexta-feira, 11 de abril de 2014

Memória olisiponense II



A manhã desperta 
sobre o dorso de mármore
branco sujo
do chafariz pombalino
a minha mão mínima 
da infância 
pousada sob o rebordo
húmido
e macio da pedra
depois de páginas
e páginas de Júlio Verne
e de um qualquer
jogo da apanhada
a outra mão roda
a torneira de cobre
pelos meus lábios
subo aos céus
por aquela corda
de água
que apenas 
de escutar-lhe 
o canto
me sacia esta sede
de criança.


Lisboa, 11 de Abril de 2014
Carlos Vieira

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Memória olisoponense I

Lembro-me do meu dia
se medir
pelo tempo que ía levar
o elevador da Bica a chegar
do Bairro Alto ao Cais do Sodré
e daquele bailado 
das mãos acentuando os vincos 
nos envelopes do futuro
do pregão do homem das cautelas
em contramão
com a sombra esquálida 
de um cão vadio 
de permeio o brilho metálico 
do papel couchée
e das palavras entrecortadas
no esgar electrónico 
da guilhotina
soube do cheiro a cola 
e à tinta fresca
nas resmas de estampados 
recém chegados da tipografia
da antecedência do papel 
dos presentes
e dos ausentes
lembro-me das mulheres 
com o tacão alto preso 
na calçada portuguesa
e daquelas de coração solto
e das sardinhas assadas
na tasca em frente
e da sua prata escamada
por mangas de alpaca
do baton vermelho 
a esborratar a burocracia
volto ao café Oríon 
no Calhariz 
com seu séquito de bancários 
preocupados 
com o fundo de caixa
e um olho 
nos sapatos de verniz
e a taxa de esforço 
e de câmbio
ou o crédito mal-parado
e os amarfanhados alfarrabistas
desconfiados num recôndito 
a olharem-nos da penumbra
por cima dos seus óculos redondos
de aros de tartaruga 
acariciando as lombadas de carneira
de olho nas primeiras edições
depois havia 
aquela gente dos jornais
pequenos corropios
em fila indiana ou aos magotes
pelas ruas estreitas e de vistas largas
tipógrafos de offset
atingidos por chumbo e de alma tingida 
gasta por várias edições
de pesadelos de muitas tiragens
e pouco dinheiro
no Largo Camões
perante os turistas
predominava a ousadia ácida 
dos pombos
tornava menos épica 
a poesia
mas lhe dava cheiro.

Lisboa, 10 de Abril de 2014


Carlos Vieira

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Vem muitas vezes...

Vem muitas vezes 
aqui ao cais
afugentar as gaivotas
pousadas 
a balançar 
o seu imaculado branco
neste mar morto
onde exala 
o cheiro fétido dos esgotos
assustadas 
da sua tempestade interior
e ele a precisar 
de recomeçar tudo outra vez.

Lisboa, 9 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Observo...

Observo
o movimento tentacular
dos guindastes
e a monstruosa paciência
dos navios
os marinheiros e estivadores
são bonecos de corda
à volta de geringonças
e bulícios que me azucrinam
a cabeça de matiz
surrealista.

Lisboa, 9 de Abril de 2014
Carlos Vieira

Leitaria de bairro



O café do Sr. Serafim
era um pequeno estabelecimento
de bairro e no qual agora se vai 
acumulando o pó
e montras e vida embaciada
e três mesas
serviço em câmara lenta
meticuloso
e cabelo cortado à escovinha
o dia-a-dia e fecho ao domingo
religiosamente
para "estar" com a sua senhora
hoje o movimento mede-se
em trinta bicas, cinco com cheirinho
seis garotos e seis descafeínados
vinte galões com tendência para diminuir
uma clientela fixa de idade já avançada 
perpassando pelo minúsculo espaço
um cheiro intenso de perfume barato
e alguma naftalina
tudo com muita educação 
discrição e murmurado
em voz baixa
"foi no que deu a liberdade"
dada a exiguidade
das vidas e dos espaços
vendia alguns pastéis de nata e queques
e ao mesmo pensava para os seus botões
os cuidados com os seus diabetes
umas garrafas de água com gaz 
e muitos copos de água
algumas guloseimas para os netos
um ou outro whisky novo 
e alguns cálices de aguardente
foi-se o movimento de outros tempos
quando teve que meter um rapaz
que lhe deu tanto jeito
para as suas escapadelas 
em que tinha outra idade
e outro garbo
para comparecer às exigências
dos conturbados e tórridos encontros
com a Generosa
sua fiel amante desde sempre.

Lisboa, 9 de Abril de 2014

Carlos Vieira

urzes...

urzes
dos brejos
e descaminhos
ávidas de beijos
das abelhas
acesas de púrpura
e de espinhos


Lisboa, 9 de Abril de 2014
Carlos Vieira


terça-feira, 8 de abril de 2014

Riviera



Estavas sentada 
na pastelaria
ao lado direito 
de quem entra
pediste um descafeínado
bebias o café sem açúcar
fitavas na grande vidraça
o tráfego intenso 
da rua lá fora
as folhas das amoreiras 
coavam e deixavam 
com nervuras
o sol primaveril
no final dos pensamentos
o gradeamento verde
do jardim zoológico
como tu gostavas de bichos
tinhas um olhar
vagamente sonhador
um eco mais ou menos 
longínquo
adquiriu um brilho húmido
no teu olhar
tiveste um esgar
ao provar o café
já tinha arrefecido
detestavas bebê-lo frio
e assim perder a grata
sensação de pegar
a chávena quente 
nas duas mãos
e sonhar 
que poderias ele 
regressar
repentinamente
entrar por ali a dentro
como dantes
pediste para pagar
e fugiste dali
subitamente nua
frágil e de porcelana
faltou-te a desenvoltura
ao passares
por ele 
e a clarividência
de o vislumbrar
surpreendentemente
sentado na obscuridade
que não tinha passado
nem futuro.

Lisboa, 8 de Abril de 2014

Carlos Vieira