quarta-feira, 9 de abril de 2014

Leitaria de bairro



O café do Sr. Serafim
era um pequeno estabelecimento
de bairro e no qual agora se vai 
acumulando o pó
e montras e vida embaciada
e três mesas
serviço em câmara lenta
meticuloso
e cabelo cortado à escovinha
o dia-a-dia e fecho ao domingo
religiosamente
para "estar" com a sua senhora
hoje o movimento mede-se
em trinta bicas, cinco com cheirinho
seis garotos e seis descafeínados
vinte galões com tendência para diminuir
uma clientela fixa de idade já avançada 
perpassando pelo minúsculo espaço
um cheiro intenso de perfume barato
e alguma naftalina
tudo com muita educação 
discrição e murmurado
em voz baixa
"foi no que deu a liberdade"
dada a exiguidade
das vidas e dos espaços
vendia alguns pastéis de nata e queques
e ao mesmo pensava para os seus botões
os cuidados com os seus diabetes
umas garrafas de água com gaz 
e muitos copos de água
algumas guloseimas para os netos
um ou outro whisky novo 
e alguns cálices de aguardente
foi-se o movimento de outros tempos
quando teve que meter um rapaz
que lhe deu tanto jeito
para as suas escapadelas 
em que tinha outra idade
e outro garbo
para comparecer às exigências
dos conturbados e tórridos encontros
com a Generosa
sua fiel amante desde sempre.

Lisboa, 9 de Abril de 2014

Carlos Vieira

urzes...

urzes
dos brejos
e descaminhos
ávidas de beijos
das abelhas
acesas de púrpura
e de espinhos


Lisboa, 9 de Abril de 2014
Carlos Vieira


terça-feira, 8 de abril de 2014

Riviera



Estavas sentada 
na pastelaria
ao lado direito 
de quem entra
pediste um descafeínado
bebias o café sem açúcar
fitavas na grande vidraça
o tráfego intenso 
da rua lá fora
as folhas das amoreiras 
coavam e deixavam 
com nervuras
o sol primaveril
no final dos pensamentos
o gradeamento verde
do jardim zoológico
como tu gostavas de bichos
tinhas um olhar
vagamente sonhador
um eco mais ou menos 
longínquo
adquiriu um brilho húmido
no teu olhar
tiveste um esgar
ao provar o café
já tinha arrefecido
detestavas bebê-lo frio
e assim perder a grata
sensação de pegar
a chávena quente 
nas duas mãos
e sonhar 
que poderias ele 
regressar
repentinamente
entrar por ali a dentro
como dantes
pediste para pagar
e fugiste dali
subitamente nua
frágil e de porcelana
faltou-te a desenvoltura
ao passares
por ele 
e a clarividência
de o vislumbrar
surpreendentemente
sentado na obscuridade
que não tinha passado
nem futuro.

Lisboa, 8 de Abril de 2014

Carlos Vieira

segunda-feira, 7 de abril de 2014

a via dolorosa



nada nos une
e toda a dor 
vos separa

uns sofrem 
de dor de cotovelo
outros de dor de alma

corres desesperadamente
e és acometido
pela dor de burro

foste à consulta da dor
querendo
ir à da alegria

quanto à dor de corno
convém passar 
ao largo

parto sem dor
parto sem dor
uns chegam outros vão

de dor em dor
vou visitando
os patamares da vida

dor persistente
que se torna aguda
e a seguir dor-mente

as dores dos outros
são também as nossas
onde nos dói mais

depois deste vale de lágrimas
deste muro de lamentações
estou anestesiado

que a dor e o medo
não nos vençam na coragem 
de sermos justos


Lisboa, 7 de Abril de 2014


Carlos Vieira

Os homens...



Os homens 
vão rezar
depois de falhar
o remédio
e do poder de amar
a coberto
do crepúsculo
que desce 
pelo mármore raiado 
dos pináculos
da catedral
que flutuam agora 
ao sabor 
da corrente azul 
do rio
as pombas 
esvoaçam 
em volta 
sem nexo
desempregadas 
das mensagens 
de Deus
a demasiada altura
para despertarem
a atenção 
de crentes e ateus
livres
ou de joelhos
desempregados
das missões
dos homens.

Lisboa, 7 de Março de 2014
Carlos Vieira




domingo, 6 de abril de 2014

O último negócio

Certa manhã 
ia eu pelo caminho pedregoso, 
quando, de espada desembainhada, 
chegou o Rei no seu carro. 
Gritei: 
— Vendo-me! 
O Rei tomou-me pela mão e disse: 
— Sou poderoso, posso comprar-te. 
Mas de nada lhe serviu o seu poder 
e voltou sem mim no seu carro. 

As casas estavam fechadas 
ao sol do meio dia, 
e eu vagueava pelo beco tortuoso 
quando um velho 
com um saco de oiro às costas 
me saiu ao encontro. 
Hesitou um momento, e disse: 
— Posso comprar-te. 
Uma a uma contou as suas moedas. 
Mas eu voltei-lhe as costas 
e fui-me embora. 

Anoitecia e a sebe do jardim 
estava toda florida. 
Uma gentil rapariga 
apareceu diante de mim, e disse: 
— Compro-te com o meu sorriso. 
Mas o sorriso empalideceu 
e apagou-se nas suas lágrimas. 
E regressou outra vez à sombra, 
sozinha. 

O sol faiscava na areia 
e as ondas do mar 
quebravam-se caprichosamente. 
Um menino estava sentado na praia 
brincando com as conchas. 
Levantou a cabeça 
e, como se me conhecesse, disse: 
— Posso comprar-te com nada. 
Desde que fiz este negócio a brincar, 
sou livre. 

Rabindranath Tagore, in "O Coração da Primavera" 
Tradução de Manuel Simões



Casa do mundo III

Casa do mundo III

fui ver o mar
ainda azul
de tanto
murmurar

mais uma vez
não se traduz
o que diz
apesar da luz

na verdade
era um monólogo
de espuma

não sei 
se eram os versos 
que morriam na praia
ou eram as ondas?

ficou da poesia
uma mão cheia
de onde escorria
areia
a outra 
de coisa nenhuma

o mesmo
vazio
da melopeia
de um búzio
de vidas
escondidas

fui ao campo
o coração 
era uma couve flor

as emoções 
vegetavam de verde
e creme
em borbotão

o tempo corria 
a passo de caracol
a acompanhá-lo
o coaxar da rã 
no pântano

percorri a cidade
e enfrentei 
o mesmo nada

o bolor 
fumos 
de todos
os escapes
e o lixo nauseabundo
nos becos 

restos de fome
de desamor 
na sombra do jardim

não sei se o tráfego 
passa por mim
se eu por ele

aquele é o ruído 
e a dor
que nos habituámos 
a viver

nas esquinas
dos gavetos
vultos vagos
efémeros protestos

na verdade 
hoje não saí
de mim
nem de casa

hoje abri portas
e janelas
e assim o mar 
o campo
e a cidade
puderam-me visitar

perante 
a raiva e o medo
e a impotência
e a insónia
vieram todos dormir
na minha cama
e fizémos uma orgia
de poesia

Lisboa,  6 de Abril de 2014
Carlos Vieira


"Garrett Room" de Andrew Wyeth