sábado, 5 de abril de 2014

o eterno retorno



um pardal
à volta 
da migalha
uma réstia 
de sol
o frenesim
da tua memória 
à solta
que se espalha
e depois 
por fim
de novo te escolta
ao vazio
até esse lugar
onde em vão 
acreditei
poderia esperar
por ti
breve sombra
de pardal
a esvoaçar
numa réstia de sol

Lisboa, 5 de Março de 2014
Carlos Vieira




Sigo, eu sozinho...

Sigo, eu sozinho, ao cair da tarde, não existe um único automóvel, na fita de asfalto que á minha frente serpenteia. Sigo a uma velocidade moderada, de forma a que a planície alentejana me envolva. Não posso parar na auto-estrada, nem tenho o tempo que gostaría, para percorrer este extenso desabrochar e usufruir o intenso aroma da primavera luxuriante. Na rádio a acompanhar surge por acidente "return to forever" e eu deixo-me levar e, por pouco tempo, sinto-me na minha imensa irrelevância, o condutor de Van Gogh em Arles.
Ourique, 21 de Março de 2014
Carlos Vieira


Incidente de trânsito III



também na vida se deve olhar, de vez em quando, o espelho retrovisor, reparmos na gente, nas casas e nas cidades que deixámos para trás. e naquelas que nos seguem como se fossem bichos, poemas e imagens efémeras, por onde passámos que nos acompanham, de onde fugímos e a onde regressamos, de onde nunca saímos, pensando que partímos.

Lisboa, 5 de Março de 2014
Carlos Vieira




É sábado...

é sábado
não seu sei 
se acordo
em sobressalto
com o realejo
se do pesadelo
de lâminas afiadas
de facas e tesouras
à espreita nas ligas
olhares e palavras
sibilinas a coberto
da bruma das manhãs

Lisboa, 5 de Abril de 2014
Carlos Vieira


sexta-feira, 4 de abril de 2014

Incidente de trânsito II

Uma indecisão no tráfego
na manhã do centro da cidade
a mulher acende as luzes
e buzina de forma veemente
ele levanta os braços em protesto
certamente mandando-a
para um outro lado
uma senhora baixa de meia idade
sai do automóvel
ele baixa o vidro diz algo
ela vocifera
ela tenta agredi-lo
o homem agarra-a pelos pulsos
quase a puxando para o seu colo
quase a abraça
naquele momento
todos os transeuntes desconheciam 
se os dois se amavam
se se odiavam
como pode ser semelhante 
o ritual do amor e da violência,
depois, depois o semáforo ficou verde
o homem fechou o vidro e arrancou
iniciou-se um imenso buzinão
a mulher ficou a falar sozinha
regressou ao automóvel
ao seu castelo
à inevitabilidade da sua solidão.

Lisboa, 4 de Março de 2014
Carlos Vieira





Incidente de trânsito I

Páro no semáforo
sorrio
sinceramente
encantado
pela reminiscência
que na desconhecida
havia de ti
ali na faixa da esquerda
um passado
não muito distante
entre mim e ti
dois riscos descontínuos
dois vidros fechados
o lugar do morto
uns pingos de chuva
consegui vislumbrar
pelos cantos dos olhos
que sorrias também
e havia um riso interior
e depois
depois foi a troca 
do número de apólices
o preenchimento 
da declaração amigável
e a discussão serena
de argumentos de quem
era a responsabilidade
pelo sinistro
tinha seguro contra 
todos os riscos 
menos contra a memória 
do seu suave perfume
e as letras
que na sua escrita nervosa
perpassam.

Lisboa, 4 de Abril de 2014


Carlos Vieira

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Perfídias



I
rasteira
gesto que surge
sorrateiro da penumbra
rente ao silêncio do cobarde

II
rasteira
golpe de luz
que te encandeia
na cúmplice obscuridade

III
rasteira
armadilha tecida
da pusilânime circunstância
da pureza contraditória do texto

IV
rasteira
insólita perturbação
que irrompe na ligeireza
conspirativa e eloquente das palavras

V
rasteira
subversão inócua
de um acaso de vontades piedosas
invocando as inóspitas luas da solidão

VI
rasteira
das torres de marfim
em que se consomem
em amor-próprio por detrás das máscaras

VII
rasteira
das girândolas
em que se imolam
os adoradores dos espelhos de água

VIII
rasteira
esse enigma
que se constrói
no emaranhado da mentira
labirinto de autocomiseração

IX
rasteira
do deslumbrado vate
que nas correrias da caça
perdeu a cedilha do ç
na poesia.

Lisboa, 4 de Abril de 2014
Carlos Vieira


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