segunda-feira, 31 de março de 2014

A dificuldade de viver um grande amor


A dificuldade
de não te saber amar
de não ter estudado
de ser analfabeto
nessa arte maior
de não estar atento
de não o sopesar
de o desconhecer 
quanto te é precioso
qual é o seu valor
de não o reconhecer
ou ser já muito tarde
a inoportuna dificuldade
de se fazer o lugar do amor
e do momento
que exige a humildade
de estar disponível
sempre disponível
de encontrar o gesto
das palavras entarameladas
e ter na mesa e ter os objetos
e tudo ser tão natural
o ângulo escolhido da luz
e da sua intensidade
para que possas cintilar
porque fui desconhecer
os mínimos ingredientes
de um grande amor?
depois é deixar a porta
aberta e ficarmos nós nus
e deixar acontecer
o acto delicado de despir
e o mais sagrado de vestir
saber despojar-nos
dessa vacuidade
que por vezes nos atinge
pelo preconceito de amar
sem compreender
o que devemos fazer
para trazer até nós
os que amamos
e deixar aproximar
os que nos amam
o que devemos dizer?
como os devemos olhar?
quais as palavras
que possam despertar
o fogo e sarar a dor?
e aquelas que podem
perdoar e consentir
a misericórdia
ou viver a glória
de
no amor
sermos sempre vencidos
e vencedores
este é todo o conhecimento
que carrego
isto é tudo
o que possuo meu amor
é tudo para ti
e esta vontade
de te voltar a encantar
desencantando
toda e qualquer forma
de te amar.

Lisboa, 31 de Março de 2014
Carlos Vieira

Fonte de felicidade



Um largo redondo
no meio um lago redondo
e um repuxo de água sem fim
no retângulo da janela
todos os dias os reutilizo
os revejo moldura familiar
que revisito e revejo sem fim
a mesma água às voltas
no mesmo largo redondo
o mesmo lago de sempre
meio cheio ou meio vazio
todos os dias abro a janela
pela primeira vez e hoje
de olhos marejados da alegria
de te reencontrar debaixo
do chuveiro e cresce em mim
extraordinário um repuxo
de felicidade sem preço
nem moedas no fundo do lago.

Lisboa,31 de Março de 2014
Carlos Vieira



                              Imagem de Anita Ekberg em “Dolce Vita” de Federico Fellini

domingo, 30 de março de 2014

Quase poemas de gente

quase poemas de gente

nómada
o sábio dos caminhos 
e das bermas
dos despejos 
sem habitação fixa

sem-abrigo
que não tem habitação
sábio de fissuras 
de pontes 
e caixas de papelão

desempregado
de longa duração
sábio do vazio
da solidão 
e dos tempos 
quase sempre mortos
que perde o pé 
e vai perdendo a mão

jovem à procura 
do primeiro emprego
sábio do nada 
e do vale tudo
e que trabalha 
de borla 
para ganhar
experiência
e ser competitivo
mais um herói
à procura

a mãe solteira
tem extraordinária 
dificuldade
em deixar o filho 
para ir trabalhar 
e em arranjar trabalho 
porque tem um filho
sábia do amor 
das pequenas coisas
e de curta duração

doente terminal
sábio dos cuidados paliativos
e da sua ausência
e de querer que a morte 
venha depressa
sobrevivem na esperança 
de não morrer
como um cão
e dar menos trabalho 
e menos despesa

velho do interior
sábio da desertificação 
sem crianças 
é um facto 
que só dão trabalho
porque não podemos 
ter tudo
em todo o lado
e o interior também 
não faz falta nenhuma
e sempre se pode tirar 
qualquer coisa da terra.


Lisboa, 30 de Março de 2014
Carlos Vieira

sem passado, assalto fotografias

Sem passado, assalto fotografias

alheias e integro-as à memorabilia
mais próxima, que por acaso é a minha.
Me conta a fascinante história da sua vida,
leio num outdoor imaginário, que faria
facilmente do recém-falecido Salinger
o autor dos Minutos de Sabedoria.
A única e burra sabedoria de que somos
capazes é a de ver sumirem os nossos
um a um. Depois do avô, um cachorro,
assim sucessivamente, sem naturalidade alguma.
Cada coisa, tanta gente, para onde caminha
tão frouxo coração? À esquerda de quem entra,
diz meu personal salinger. Vou pra sala
e a sala é um poço. Bem localizado no sofá,
começo a assistir pela undécima vez
a Blade Runner. E cheio de esperança
penso no futuro de milhares de pessoas,
entre as quais, os replicantes.

leonardo gandolfi





Negligência ou fogo-posto

Louca
vive no fim do lugar
na margem da floresta
à noite 
pousar-lhe-ia
a coruja num ombro
e os lobos
desciam as montanhas
e vinham-lhe comer
à mão
altas horas
faíscavam espantosas
fosforências
e saíam dali homens
tenebrosos
rezavam as má-línguas
que era tentada
pela poesia
e dada ao mau-olhado
o povo falava
de tudo aquilo a contragosto
até que um dia
um incêndio devorou a louca
e a sua casa
dividia-se a aldeia
comentando
abertamente ou entredentes 
que tinha sido 
providência divina 
fogo-posto!

Lisboa, 30 de Março de 2014
Carlos Vieira




DA POESIA MODERNA



O poema da mente no ato de encontrar
O que há de bastar. Não teve sempre
De encontrar: a cena estava armada; repetia o que
Estava no roteiro.
                            Então o teatro foi mudado
Para uma outra coisa. Seu passado um suvenir.
Tem de estar vivo, aprender a fala do lugar.
Tem de encarar os homens do tempo e encontrar
As mulheres do tempo. Tem de pensar na guerra
E tem de achar o que bastará. Tem de
Construir um novo palco. Tem de estar nesse palco
E, como um ator insaciável, lentamente e
Com meditação, dizer as palavras que no ouvido,
No delicadíssimo ouvido da mente, repitam,
Exatamente, aquilo que se quer ouvir, ao som
Do qual uma audiência invisível escuta,
Não a peça, mas a si mesma, expressa
Numa emoção como de duas pessoas, como de duas
Emoções tornando-se uma. O ator é
Um metafísico no escuro, tangendo
Um instrumento, tangendo uma corda tensa que dá
Sons que assumem repentina correção, de todo
Contendo a mente, abaixo da qual não poderá descer,
Além da qual não tem vontade de subir.
                                                                      Tem de
Ser o encontrar de uma satisfação, e pode ser
Um homem patinando ou uma mulher dançando, uma mulher
Penteando-se. O poema do ato da mente.

Carta simples


Hoje quis escrever-te e não consegui.
Pesam-me os verbos como pedras
nestes dedos, mas vês,
é sobre ti que se debruçam as palavras
que não saem
e nestes olhos a gratidão
de saberes sempre quando preciso da tua mão
na face, quase materna, quase amante,
e azuis os rasgos de ternura
de uns olhos castanhos e
meigos
que me libertam das águas revoltas
onde lutam os meus neurónios
em batalhas estéreis e sem sentido.
Tens sido tu o porto de abrigo
que me recolhe nas paisagens desse País
que escondes no teu corpo e no teu nome
e me dá uma paz profunda
e me asseguras na minha infantil insegurança
que o passaporte que assinaste para eu aí viver
é vitalício e sem encargos,
esse País tão infinito onde me quero nacionalizar
e ter asilo.
Se conseguisse, hoje tentaria explicar-te
que as razões da minha insegurança
vêm do facto de que quando me multiplico
nos jardins que escolho com cuidado
a água desaparece sem razão
correndo aos poucos para outros rios,
desidratando-me os afectos.
Sou inseguro e insistente
devido à inevitabilidade de que perpetuarás
esse ciclo, e que tenhas medo e fujas
e ergas muros que ficarei a contemplar
com os meus olhos tristes
que te dizem tanto sem dizerem nada,
excepto não tenhas medo,
não fujas,
não vás,
não sejas um rio
onde estas raízes não bebam.



w.d. sevahc